Agora com a guerra a decorrer, cuja escalada considera ter sido em certa medida previsível, deixou a ficção em suspenso e está empenhado na luta em defesa da Ucrânia, usando como armas a escrita sobre a realidade, para explicar a invasão ao mundo, contou em entrevista à agência Lusa.

“Abelhas cinzentas” é o título do romance que acaba de chegar a Portugal, pela Porto Editora, apesar de ter sido originalmente publicado em 2018, que aborda o conflito no Donbas, a decorrer desde 2014.

Andrei Kurkov não tinha planeado escrever um livro sobre a guerra até 2017.

O que aconteceu é que após a anexação da Crimeia e o início da guerra em Donbas, chegaram vários refugiados a Kiev e o escritor conheceu várias pessoas, uma delas, um homem que todos os meses ia a uma aldeia na linha da frente, onde permaneciam sete famílias, para lhes levar medicamentos e outros bens, porque não havia nada, “eletricidade, gás, farmácia, polícia, era uma terra de ninguém, uma zona cinzenta”, contou.

Depois de consultar o mapa e perceber que essa “zona cinzenta” era o território entre os separatistas e o exército ucraniano, que compreendia aldeias onde chegavam a viver apenas duas ou três pessoas, e de ter constatado que havia “mais de 200 livros sobre a guerra, mas nada sobre as pessoas apanhadas no meio”, decidiu “dar voz a essas pessoas”.

“Foi assim que comecei. Muitas coisas vieram para a história por causa dos eventos reais e conversas, e quis ter a Crimeia na história, porque ninguém escrevia sobre a Crimeia a seguir à anexação”.

Kurkov inventou uma pequena aldeia de apenas três ruas – Starhorodivka –, situada perto de Gorlivka, onde vivem apenas dois homens, Sergeyich e Pashka, inimigos de infância, que passam a tolerar-se e a conviver por uma questão de sobrevivência.

A história começa no inverno de 2017, durante a hibernação das abelhas, e descreve o dia-a-dia de Sergeyich, há três anos sem eletricidade, com frio, fome e solidão.

A chegada da primavera impele-o a empreender uma viagem por estrada com as suas colmeias, através do território da Ucrânia oriental devastado pela guerra, para fora da zona cinzenta, em busca de um lugar na natureza onde possa libertar as abelhas para recolherem o pólen.

“Quando pensei na personagem principal quis que fosse um Apicultor, porque nunca são agressivos, são pessoas consideradas sábias nas suas povoações e muito respeitadas, e têm uma ocupação que os mantém afastados da realidade política”.

As abelhas aqui funcionam como uma metáfora, na medida em que Sergeyich “tem respeito pelas abelhas, porque acredita que são as únicas criaturas vivas que conseguiram criar uma sociedade comunista, porque trabalham, fabricam mel, o mel é-lhes tirado, não são pagas, mas elas não se queixam, apenas continuam a trabalhar, tal como os mineiros e outros trabalhadores do tempo soviético”.

“As abelhas são também insetos coletivos, o que torna possível compará-las com humanos coletivos. A mentalidade soviética é coletiva, em que as pessoas não querem ser vistas separadamente do grande grupo, porque isso implica ter responsabilidade, ter um rosto, e ter um rosto em Donbas, ser visível, é sempre perigoso, porque nas sociedade coletivas tens a multidão, e a multidão decide o que fazer, mas ninguém tem um nome no meio da multidão”, afirmou.

Mostrando que a Ucrânia está no lado oposto da Rússia, Andrei Kurkov afirmou que os ucranianos são individualistas, porque nunca tiveram uma monarquia.

“Os russos eram unidos em torno do czar e eram ensinados a aceitar e a amar o czar, os ucranianos escolhem os líderes desde o século XVI”, afirmou, acrescentando que os ucranianos “nunca tiveram respeito por regras, leis, governos e políticos”.

“Por isso, temos 400 partidos políticos, e na Rússia continua a haver, como na União Soviética, um sistema de um partido político, que é o Rússia Unida, o partido de Putin”.

Andrei Kurkov é ucraniano mas nasceu em São Petersburgo, reside em Kiev desde a infância, mas escreve ficção apenas em russo, o que já motivou reações muito negativas por parte de alguns intelectuais ucranianos.

“Sou de etnia russa, mas com identidade ucraniana, tenho a minha opinião e estou preparado para lutar por isso, e estou a lutar, e tenho recebido muito ódio nas últimas semanas no Facebook por causa dos meus pontos de vista e declarações, mas eu não quero saber. Eu sou ucraniano com origem russa”, clarificou.

Apesar de ter escrito “Abelhas cinzentas” vários anos antes da invasão russa, a 24 de fevereiro deste ano, Kurkov considera que, na altura, a escalada já era previsível, porque “Putin não estava contente com esta guerra congelada”, porque a anexação da Crimeia continuava a não ser reconhecida, a Rússia estava a sofrer sanções e “a única forma de parar isso era atacar a Ucrânia e obrigar o governo ucraniano a anunciar que a Ucrânia aceitava uma anexação do Donbas e da Crimeia”.

Uma personagem da história afirma a dada altura que “o que aconteceu é o que o Putin diz que aconteceu” e que “o Putin não mente”.

Segundo Kurkov existe ainda muita gente na Rússia que pensa assim, que tem esta “confiança cega no Czar Putin”, apesar de “poderem verificar que ele mente todos os dias”.

De momento tem a escrita ficcional em suspenso, porque está empenhado em escrever sobre a realidade, nomeadamente em artigos e ensaios.

“Interrompi um romance que estava a escrever sobre Kiev em 1919, um romance histórico, e interrompi no dia em que a guerra começou e não pude continuar”.

“Não posso escrever ficção porque estou comprometido com a realidade. Não me posso distrair da guerra. Para escrever ficção é preciso distrair-me da realidade, é preciso saber sair da realidade pelo menos três horas por dia”.

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