"Aprendi que somos todos muito mais parecidos do que diferentes. E isso é algo poderoso de se perceber", confessa Shangela ao SAPO Mag numa entrevista virtual a propósito do regresso da série da qual é um dos rostos e produtoras.

Estreada no ano passado na HBO Portugal, "We're Here" está de volta à plataforma de streaming este mês para continuar a acompanhar a criação de espetáculos de drag queens em várias cidades da América profunda. A premissa da primeira temporada mantém-se: cada episódio decorre numa localidade diferente e relata os percursos, ambições e ansiedades de residentes da comunidade LGBTQIA+ e daqueles que lhes estão mais próximos.

"É uma série que dá voz a que nem sempre tem a oportunidade de ser visto ou ouvido", descreve a norte-americana, que voltou a percorrer o país ao lado de Bob the Drag Queen e Eureka O'Hara, trio cuja dinâmica alavancou a popularidade da aposta.

"É uma série sobre comunidades. Encontrar comunidades, criar comunidades num local onde pensamos que não existem", acrescenta a ex-participante de "RuPaul's Drag Race" cujo currículo também inclui aparições em séries como "Glee", "Ficheiros Secretos" e "Ossos" ou no filme "Assim Nasce uma Estrela" (versão 2018). "Cresci numa cidade muito pequena e conservadora do Texas e sei que há estereótipos em relação a tudo. Tento não ser assim, até porque sei que na minha cidade havia quem discriminasse mas também pessoas incríveis, que eram pelo amor. E em cada cidade que visitámos na série, tive sempre esperança de encontrar pessoas assim".

Shangela
Shangela créditos: Lusa

"Não temos medo de contar a história toda"

Se a primeira temporada de "We're Here" percorreu localidades remotas do Idaho, Missouri, Novo México ou Louisiana em seis episódios, a segunda conta com oito capítulos e também passa pelo Alabama, Texas, Indiana, Califórnia ou Carolina do Sul. "Fui agradavelmente surpreendida pela quantidade de pessoas que nos receberam bem nos locais que visitámos. Mas algumas também nos receberam com ódio, à falta de uma palavra melhor. A minha postura é muito 'Adoro toda a gente, toda a gente me vai adorar'. Mas chegámos a ser recebidos com frases do tipo 'Vão para casa, paneleiros'. E nem acredito que ainda há pessoas que dizem essas coisas... Mas isso também nos lembra que, por muito que tenhamos avançado em termos de igualdade, aceitação, inclusão e visibilidade, ainda temos muito a fazer".

E como lidar com o ódio numa série que apela à esperança? "Vejo muitas comédias românticas da Jennifer Lopez para descontrair", brinca. "A vida tem momentos de alegria e celebração, mas também de dor profunda e emoções pesadas. E esta série lida com isso tudo. Mas tenho a sorte de a partilhar com os outros dois apresentadores/irmãs que têm experiências parecidas com a minha. Por isso, muitas vezes, juntamo-nos ao fim do dia para nos abraçarmos ou apenas para nos sentarmos em silêncio, ou falar de coisas que nos fazem rir, ver televisão... Mas é bom podermos falar de tudo, porque isso nos aproxima", explica.

We're Here
We're Here

"Aqui podemos ajudar as pessoas a encontrar a sua melhor versão, e também a mais livre. Quando saímos da nossa zona de conforto e nos obrigamos a encarar o medo, podemos ser muitos mais fortes e ter noção da nossa coragem", garante.

"100% desta série é sobre ser genuíno e autêntico. Aqui não há argumento, há histórias reais, sobre as vidas das pessoas e como tentar ajudá-las a sentirem-se melhor com elas próprias. Queremos empoderar, inspirar as pessoas e construir uma ligação genuína com elas. Não podes contar uma história real sem contar a história toda. E aqui não temos medo de contar a história toda".

O espetáculo tem de continuar

"O maior desafio da primeira temporada foi perceber como iríamos mostrar a nossa faceta mais vulnerável às pessoas que fomos conhecendo para que elas se sentissem encorajadas a fazer o mesmo. E também perceber como produzir uma série sobre drag queens em locais que não tinham muitos recursos de forma a conseguir que se passasse um lado fabuloso", recorda.

We're Here
We're Here

A segunda temporada, no entanto, teve um obstáculo inesperado. "Resolvemos muitas coisas mas tivemos muitas restrições devido à pandemia [de COVID-19]. Tivemos de assegurar que toda a gente se sentia protegida e garantir que a série e os espetáculos não perdiam qualidade. E estou muito feliz por termos conseguido".

Shangela recorda que "foi muito bonito conhecer locais que já estavam a ultrapassar a pandemia, com a ajuda da vacinação, e nas quais as pessoas podiam ter um contacto mais próximo. As pessoas estavam muito entusiasmadas, com uma energia explosiva. Isso deixou-nos muito comovidos. Pudemos juntar-nos, trabalhar, fazer espetáculos drag e partilhar esses momentos com o mundo", conta ao lembrar a experiência dos últimos meses.

"Passámos tanto tempo isolados, afastados da nossa família, amigos, até dos nossos vizinhos, que ter uma série que mostre que estamos juntos, a apoiarmo-nos mutuamente, é mais importante do que nunca".

Família global

"Não interessa o tipo de vida que tenhas, há algo para toda a gente na série", assinala. "Estou muito grata por este momento de visibilidade de drag queens, da experiência drag e da existência da comunidade LGBTQIA+. Quando as pessoas começaram a ver programas com pessoas drag, começaram a perceber que não somos só uma ideia, ou algo de que ouviram falar, mas os seus irmãos, irmãs, tios, irmãos, pais, filhos, avós, netos, vizinhos... Tudo isso nos torna mais reais".

Shangela
Shangela créditos: Lusa

Shangela diz que se apercebeu do impacto de "We're Here" logo desde o final do primeiro episódio, tanto na auto-estima de alguns dos entrevistados como na sua dinâmica familiar. "As pessoas estão entusiasmadas por ver outras que se libertaram dos estereótipos e rótulos para viverem livremente, sem vergonha do que as torna especiais. Não somos as primeiras drag queens. Sempre existiram, há décadas ou mais. Mas agora podemos ser vistas em todo o mundo. Até em casas de avós, que podem nem saber bem o que é uma drag queen, mas que são fãs da série e encaram-nos como pessoas reais. E isso empodera todos, independentemente de serem ou não da comunidade LGTBQIA+".

Embora a terceira temporada de "We're Here" ainda aguarde confirmação, Shangela mostra-se interessada em continuar estas viagens e estes retratos. E não necessariamente apenas dentro de portas. "Espero que possamos viajar por todo o mundo porque além das histórias que contámos nestas duas temporadas, há muitas mais que merecem ser contadas para que as pessoas percebam que não estão sozinhas nas suas experiências".