É apontado, a par de “Citizen Kane” (1941), como um dos melhores filmes de sempre. Mas a verdade é que um processo criativo tumultuoso não fazia adivinhar o sucesso que alcançou. O que determinou, então, que “O Padrinho” tenha merecido a admiração de várias gerações?
Francis Ford Coppola lançou, em 1972, o primeiro episódio desta que se tornaria uma das sagas mais apreciadas do cinema americano. Deve dizer-se, à partida, que a história não se presta a um grande filme (ainda que o livro de Mario Puzo, em que é baseado, fosse já nessa altura um best-seller). “O Padrinho” é a história de Don Vito Corleone (Marlon Brando), líder de uma de cinco famílias italianas poderosas nos Estados Unidos dos anos 1970. Uma guerra desponta entre as famílias, acabando por colocar o império de poder e influência de Don Vito nas mãos do filho Michael (Al Pacino), que se dizia longe dos negócios da família. A morte do irmão herdeiro, Sonny (James Caan), leva-o a assumir esse papel e a tornar-se um líder mais sanguinário e temido do que o pai.
“O Padrinho” não vai buscar o seu sucesso a técnicas cinematográficas particularmente extraordinárias, como as que Coppola viria a usar em “Drácula de Bram Stoker” (1992). A rodagem do filme é mais subtil nesse aspeto. Por exemplo, nas cenas do casamento, os convidados são filmados de longe, enquanto dançam e conversam animadamente. A câmara está lá atrás, longe das interações mas pronta a mostrar-nos como o grupo se comporta e esse efeito é importante para mergulharmos na realidade daquelas famílias italianas poderosas: unidas e numerosas.
Também não vamos encontrar o real mérito do filme nas prestações dos atores, diga-se. É verdade que Marlon Brando ganhou um Óscar (apesar de ter rejeitado o galardão), mas recorde-se o que se dizia dele à época (ou em qualquer época do trabalho do ator, assim parece). É que poucos gostavam de trabalhar com Brando. Apontavam-lhe falta de profissionalismo e há histórias sobre como nunca decorava as falas e os realizadores tinham de dar a volta ao texto colando cábulas nos cenários e até nos atores com quem contracenava. Coppola insistiu e o estúdio lá aceitou Brando – mas o próprio realizador também não foi a primeira escolha. Aconteceu o mesmo com Al Pacino, cujo papel (Michael Corleone) podia ter ido parar às mãos de Robert Redford ou Martin Sheen.
Ora, Brando deve o seu reconhecimento como O Padrinho original a um carisma inato, embora não muito evidente. Don Vito é o patriarca que todos tratam com uma reverência impressionante, mas surge-nos mais como um líder cuja idade ceifou a mão forte. Apesar de sobreviver a cinco tiros disparados sobre si pelos seus inimigos, sucumbe a um ataque fulminante, no jardim de casa, enquanto brinca com o neto. A dignidade do desfecho não casa com a personagem e percebemos porquê: habituámo-nos a ver as restantes personagens tratá-lo com aquele respeito, desde a cena inicial, em que traja de fato e laço, uma rosa vermelha na lapela, resguardado na penumbra do seu escritório enquanto concede pedidos aos que o procuram.
Tememos Don Corleone não por causa do seu maxilar cerrado (que torna a figura rígida em vez de ameaçadora). Reconhecemos-lhe um enorme respeito, mas não porque o ator nos tenha mostrado que essa é a leitura devida. Fazemo-lo porque aprendemos com a reverência que as restantes personagens lhe prestam. Até Luca Brasi, um italiano alto e corpulento, se atropela nas palavras quando se dirige a Don Vito – e diz-se que o ator Lenny Montana terá trocado a fala nessa cena por nervosismo, já que estava a contracenar com Marlon Brando. Coppola achou a reação adequada e manteve o take.
De regresso às prestações dos atores, Al Pacino merece algumas palavras. Alguma crítica considerou a sua prestação como exagerada. É verdade que Michael tem um olhar quase sempre carregado e a sua reação aos acontecimentos é sobretudo de uma frieza aguda. Mas não é menos verdade que a história deixa pouca margem para que Michael fuja desse registo.
Apenas na cena do casamento o vemos mais descontraído e esse é o momento em que o conhecemos pela primeira vez. Aí, Michael é o namorado de Kay (Diane Keaton), com quem conversa de forma descontraída, assegurando-lhe que é diferente da família, que não alinha com negócios obscuros e influências tentaculares. Logo depois, sem vermos a evolução numa espiral autodestrutiva, Michael já é o filho revoltado (mas calmo) de Don Vito. É a transformação de uma grande personagem, passando de herói secundário a vilão de primeira linha num piscar de olhos, uma transformação que faz lembrar Walter White (Bryan Cranston) de Breaking Bad.
O olhar pesado ganha-o aqui, quando decide que é o único membro da família com condições para vingar o patriarca, matando um negociador estreante e um polícia corrupto a sangue frio. Também é neste momento que o seu maxilar se cerra, como o do pai, depois de ter sido agredido por aquele mesmo polícia.
Al Pacino acentua o lado mais frio da personagem, com a ajuda dos seus olhos muitos negros. É assim até mesmo quando conhece a futura mulher, Apollonia (Simonetta Stefanelli), no seu desterro siciliano. É assim quando Apollonia morre numa explosão, no seu carro armadilhado. É também assim que recebe a notícia de que Sonny, o irmão que devia ascender ao lugar de Don Vito, é assassinado de forma violenta.
Essa sucessão de acontecimentos diz-nos que Michael deixará de ser apenas o filho que Don Vito queria ver como senador para se tornar o novo chefe da família. Apesar da desconfiança dos mais próximos do seu pai, Michael consegue suplantar o patriarca, não em respeito mas no medo que cria em torno da sua figura. Na melhor cena do filme, Michael responde às perguntas do padre que está a batizar o seu futuro afilhado. “Renuncias a Satanás?” “Sim, renuncio.” Os planos do batismo são cruzados com as mortes dos chefes das restantes quatro famílias italianas, que Michael encomenda para estabelecer o início do seu mandato e vingar a morte de Sonny.
Sim, Michael é novo padrinho, o novo Don Corleone. Mas não herdou o tom piedoso com que Vito acede a todos os que lhe pedem justiça, no dia do casamento da sua filha, como uma tradição cumprida com fastio e alguma honra. Michael não é pela justiça, é pela vingança, e quanto mais violenta melhor.
A queda do sonho americano
O que é que justifica, então, o sucesso de “O Padrinho”? Desde logo, o contexto social em que o filme estreou. Naquele ano de 1972, os Estados Unidos estavam mergulhados na fase final da Guerra do Vietname (que viria a ser foco de outro grande filme de Coppola, “Apocalypse Now”, em 1977). Pouco depois da estreia, o povo americano ficava chocado com o escândalo do Watergate.
Essas mudanças profundas na sociedade americana deram mais força às primeiras palavras que ouvimos no filme: “Eu acredito na América”. Quem o diz é Bonasera (Salvatore Corsitto), mais um dos vão pedir favores a Don Vito. Bonasera até acreditava no ideal perdido do sonho americano, porque foi naquele país que criou fortuna, família e raízes. Mas a justiça americana falhou, quando libertou os agressores da sua filha. Aquele homem, que Don Corleone acusa de o evitar por julgar ter a proteção das estruturas americanas (a justiça dos tribunais, a segurança das autoridades), está ali a pedir-lhe que mate alguém a troco de dinheiro sem qualquer sinal de respeito ou amizade. Esta é uma fala excecional em todo o guião, por expressar imediatamente o sentimento de justiça que aprendemos a identificar na família Corleone. Fazem justiça (pelas próprias mãos, é certo), mas têm esse lado racional que nos põe a torcer por eles. Ao mesmo tempo, é uma fala que expressa como é que a sociedade vê a máfia italiana. Máfia é uma palavra pesada e foi mesmo evitada no guião, a pedido externo, para combater os estereótipos contra os imigrantes italianos nos EUA.
Mas esses estereótipos também são um dos trunfos de “O Padrinho”. Teria Martin Scorsese feito “Os Bons Rapazes” (1990) sem que existisse a saga de Coppola? Teríamos chegado a Tony Soprano sem conhecermos os Corleone?
Mario Puzo criou o universo da máfia italiana e o cinema deu-lhe uma longevidade reconhecida, assim como inventou termos que se cristalizaram. São seus os termos “padrinho” e “Don” para designar o chefe da família e a verdade é que eles símbolos imediatos do estatuto que tem a pessoa a quem eles se referem. “Vou fazer-lhe uma oferta que não pode recusar” é outra das frases que Puzo criou, com rasgo e inspiração, tornando-se uma das mais conhecidas do filme.
Com estas palavras, Francis Ford Coppola construiu uma das cenas mais queridas da cultura pop (recriada até pelos Simpsons). O realizador do filme onde o afilhado de Don Vito quer ser protagonista recusa-se a contratá-lo. O consigliere Tom Hagen (Robert Duvall) transmite-lhe a primeira oferta do Padrinho.
O realizador, irredutível, há de acordar na sua cama, no dia seguinte, com a cabeça de um dos seus cavalos decepada, a ensanguentar-lhe os lençóis. Coppola não seria ele próprio se tivesse concordado com a proposta do estúdio para usar uma cabeça de cavalo falsa. E, numa era em que as preocupações com os direitos dos animais eram quase miragem, Coppola usou uma cabeça verdadeira acrescentando mais realismo à cena. Mais uma manobra psicológica que nos faz temer Don Corleone nos seus tempos áureos: é justo na sua oferta inicial, mas ela não deve ser recusada.
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