Num painel que juntou a cantora Gisela João, a apresentadora Inês Lopes Gonçalves, as atrizes Mariana Monteiro e Soraia Chaves e a embaixadora dos Estados Unidos da América em Portugal, Randi Charno Levine, que moderou a conversa, Patty Jenkins revisitou o seu caminho como espectadora e sobretudo como realizadora, tendo a representatividade e o empoderamento femininos como ponto de partida.
A californiana de 53 anos que despertou atenções com "Monstro" (2003), filme com um dos papéis mais singulares e menos glamourosos de Charlize Theron, e que dirigiu duas aventuras da Mulher-Maravilha (estreadas em 2017 e 2020), apostas num comprimento de onda radicalmente distinto, confessou-se adepta de histórias "profundas" e "humanas".
Essas são características que muitos apontaram à sua estreia nas longas-metragens (distinguida com um Independent Spirit Award), depois de duas curtas, e que a realizadora garante ter mantido nos blockbusters centrados na super-heroína da DC.
"Adoro a personagem da Mulher-Maravilha. Ao longo dos tempos, tem sido habitual utilizar personagens comuns para contar histórias profundas. Quer se trate de grandes mitos ou de personagens religiosas. Ao longo da história, temos feito isto. Escolhemos pessoas que todos sabemos quem são e contamos uma história profunda através delas", assinala. E os super-heróis não são exceção nessa linhagem, sublinha Jenkins. "A minha versão favorita do género dos super-heróis é a viagem do herói. É claro que a viagem do herói através dos olhos de uma mulher será provavelmente um pouco diferente."
Filmes sobre mulheres? Maravilha. Mas será que basta?
Antes de Gal Gadot ter encarnado a protagonista dos populares filmes captados "através dos olhos de uma mulher", Linda Carter interpretou a personagem muitas décadas antes, na série televisiva da Mulher-Maravilha. "Ela disse-me uma coisa vez, e eu lembro-me sempre disso: 'Nunca fiz de Mulher-Maravilha. Fiz sempre de Diana'", recorda a realizadora, partilhando as questões que colocou quando aceitou dirigir essas aventuras. "Quem é esta pessoa? E o que é que ela faz para tentar ser um herói neste mundo? E o que é ser um herói neste mundo?", interrogou-se então.
Patty Jenkins lembra que o primeiro filme da super-heroína foi muito discutido por ter sido pioneiro num universo dominado por homens. No máximo, até então, as mulheres partilhavam o protagonismo em filmes de equipas de super-heróis, como os Vingadores, X-Men ou Quarteto Fantástico (ao contrário do que acontecia na BD, onde já tinham direito a títulos em nome próprio há mais de meio século).
"Quando as pessoas diziam, face ao sucesso do filme, 'Afinal, toda a gente queria ver uma personagem feminina. E queriam ver uma mulher a realizá-lo', não era isso que estava em causa", vinca. "O ponto é que se tratava de uma viagem de um herói contada por um ângulo muito específico, e essa é uma fórmula muito antiga e bonita há muito tempo. Limitei-me a abordá-la como uma história muito humana", defende.
"O fracasso destas personagens femininas durante muito tempo foi quando tentaram fazer da personagem uma mulher que é como um homem", lamenta a realizadora cujo currículo também já passou pela televisão, em séries como "Arrested Development", "Entourage" ou "The Killing" (ter dirigido o piloto desta última valeu-lhe uma nomeação para um Emmy).
Humanidade e equidade
A moderadora da conversa, Randi Charno Levine, assinalou que a procura de humanidade se manteve na própria rodagem de "Mulher-Maravilha". Afinal, tanto Patty Jenkins como Gal Gadot estiveram acompanhadas pela família nesses dias, e procuraram alargar o privilégio ao resto da equipa.
"Eu disse: 'Se não conseguirem encontrar uma creche, tragam o vosso filho para o trabalho, porque é assim que fazemos as coisas. E é por isso que a nossa família está na rodagem", conta a realizadora. "Pensei: 'Vamos esquecer a forma como foi feito antes e dizer que o facto de eu ser mãe não é um empecilho. Significa apenas que o meu filho está mesmo ali'", acrescenta, notando que o convite não se limitou às mães. "Sinto que muitos homens nas filmagens gostariam de poder estar com os filhos e não estar a trabalhar 18 horas por dia ou algo do género. Por isso, abri as portas aos filhos de qualquer pessoa."
Essa medida solidária também foi uma forma de tentar travar o sexismo na indústria cinematográfica, um mal do qual demorou a dar conta. "Só depois de fazer 'Monstro' é que me apercebi do sexismo. E então pensei: 'Uau, estou a ser tratada de forma completamente diferente. Estão a propor-me um salário diferente", lembra, reforçando que não cedeu. "Não consigo acreditar que querem que eu faça um filme da Mulher-Maravilha, mas não o querem pagar", diz ter pensado na altura.
Jenkins insistiu e tornou-se a primeira mulher a realizar um filme com um orçamento superior a 100 milhões de dólares. "Mas não sei se há mais alguém que o faça", nota. "Onde é que estamos agora? Não estamos nem de perto nem de longe onde queremos estar", frisa. "A seguir a 'Mulher-Maravilha', muita gente fez filmes com mulheres, e nenhum deles teve uma sequela. Portanto, não mudou nada." E apesar de ter ganho essa disputa, revela que há uma limitação que não consegue afastar: "Sou sempre uma realizadora mulher, não sou simplesmente uma realizadora".
Pintar em Nova Iorque e outras histórias
Apesar de estar ligada às artes e em particular à imagem desde cedo, Jenkins conta que a carreira no cinema foi uma surpresa. "A forma como lá cheguei foi interessante porque estava em Nova Iorque a frequentar a escola de pintura. Sim, estudava pintura. Porque embora tenha crescido a ver muitos filmes e de ter uma vasta educação cinematográfica, nunca me ocorreu que poderia ser realizadora. Sabia que era uma artista, mas andei na escola a pintar. A música era o meu primeiro amor. Adorava atuar, mas não queria atuar e não queria tocar. Por isso, senti-me muito bem quando juntei todas estas coisas, sem dúvida", esclarece.
"Mas a melhor coisa que tirei daí foi que, no início dos anos 90, a cidade de Nova Iorque era muito diversificada. Muitas das questões de que falamos hoje faziam parte da minha experiência quotidiana. Eu tinha amigos trans, negros, franceses, o que fosse. Mas o maior benefício que tive foi o facto de a minha mãe ser super feminista".
Se o contacto com uma indústria na qual se acredita que "é muito difícil mudar os hábitos" lhe mostrou uma filosofia nos antípodas dessa abertura, a californiana ainda encontra sinais inspiradores. "Basicamente, pensam que uma coisa vai ter sucesso com base no que teve sucesso no passado", critica. Mas enaltece a atitude dos novos criadores e espectadores ao ver "todos estes miúdos da geração seguinte encontrarem o seu público" sem se sujeitarem a esses pressupostos enquanto tiram partido das plataformas virtuais.
"Isso deixa-me de boca aberta. Ninguém sabia que as pessoas queriam ouvir a história deste ou daquele miúdo ou daquela pessoa. Por isso, continuo a dizer à nossa indústria que toda a gente tem de acordar muito depressa, porque as pessoas que vêm atrás de nós não precisam de nenhum de vós. Elas vão encontrar o seu público e ninguém lhes pode dizer para irem embora. E é por isso que estou aqui. Ainda acredito profundamente no poder da história. E mudámos as vidas uns dos outros através do poder das histórias durante milhares de anos", realça.
"Há milhares de anos que, junto à fogueira, se contavam histórias não só de homens e mulheres, mas também de pessoas idosas, de pessoas com deficiência, de todo o tipo de pessoas que podem aprender umas com as outras. Estamos a sofrer, e o mundo inteiro está a sofrer por não termos as histórias uns dos outros", observa. "É por isso que vos quero agradecer muito e estou a incentivar toda a gente a contar a sua história e estou entusiasmada com o futuro, onde estamos a ouvir as histórias uns dos outros."
No Tribeca Festival Lisboa, há mais histórias para contar este sábado, 19 de outubro, depois de um dia que arrancou com o ator Robert De Niro e a produtora Jane Rosenthal, fundadores do evento nova-iorquino que este ano se alargou à capital portuguesa.
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