Apesar de uma língua em comum, um acontecimento raro: um filme brasileiro chega aos cinemas portugueses.

"Ainda Estou Aqui" estreia-se esta quinta-feira após um percurso que começou com a antestreia mundial no Festival de Veneza, onde foi recebido com entusiásticos dez minutos de aplausos e a seguir distinguido como o Melhor Argumento, o primeiro de dezenas de prémios e nomeações e a passagem por outros festivais internacionais.

Colocado na corrida para o BAFTA de Melhor Filme em Língua Não Inglesa na quarta-feira e com forte favoritismo à nomeação para Melhor Filme Internacional nos Óscares, que serão anunciados no dia 23, o mais mediático de todos os prémios conquistados pode ser um trampolim para chegar ainda mais longe na corrida às estatuetas douradas de Hollywood: um histórico Globo de Ouro para a protagonista Fernanda Torres em Melhor Atriz em Drama, 26 anos após a mãe, a lendária Fernanda Montenegro, ter sido nomeada na mesma categoria por "Central do Brasil".

"Ainda Estou Aqui" tem sido elogiado como um regresso à boa forma do realizador Walter Salles, que já teve outros três filmes escolhidos para representar o Brasil nos Óscares: "A Grande Arte" (1991), "Central do Brasil" (1998) e "Abril Despedaçado" (2001).

Entre aplausos, lágrimas e aclamações, também mais de três milhões de brasileiros já assistiram nos cinemas desde 7 de novembro ao filme que revive o fantasma da ditadura militar (1964-1985), apesar de um apelo ao boicote da extrema-direita, tornando-o o maior sucesso do cinema latino-americano em 2024.

Mas "Ainda Estou Aqui" é sobretudo uma homenagem a Eunice Paiva, a mulher de Rubens Paiva, engenheiro e político sequestrado pelos militares em 1971, mostrando a sua luta para esclarecer o desaparecimento.

Paiva foi deputado de esquerda até que a ascensão dos militares em 1964 o levou ao exílio. Regressou inesperadamente ao país, onde retomou a carreira de engenheiro, sem abandonar os contactos com a clandestinidade.

Quando a situação se agravou no Brasil, com ataques e sequestros de grupos de extrema esquerda e uma sangrenta repressão militar, Paiva foi preso, em janeiro de 1971. Um grupo de homens armados tirou-o da sua casa no Rio de Janeiro e ele nunca mais reapareceu.

Eunice Paiva seria pouco depois também detida juntamente com uma das filhas e passou 12 dias sob interrogatório. A filha foi libertada após 24 horas.

Representada por Fernanda Torres e depois por Fernanda Montenegro na velhice, Eunice é a mulher que não desiste da busca pelo seu marido, sem abandonar a educação dos filhos.

A ditadura militar brasileira foi responsável pela morte e desaparecimento de mais de 400 pessoas, segundo a Comissão Nacional da Verdade que investigou as violações dos seus direitos.

"A história de Eunice confunde-se com a do Brasil naqueles anos horríveis que vivemos", lembrou Salles na conferência de imprensa em Veneza.

"É isso que me interessa no cinema", acrescentou.

Selton Mello, Fernanda Torres e Walter Salles no Festival de Toronto a 9 de setembro de 2024

O filme é baseado no livro escrito por um dos filhos do casal, Marcelo Rubens Paiva, em homenagem à mãe incansável, que se reconstruiu como advogada e que posava perante a imprensa sem perder o sorriso.

O mesmo sorriso que mostrou quando finalmente conseguiu, 25 anos depois do desaparecimento do marido, obter a certidão de óbito oficial.

"Ela era uma mulher que enfrentava a tragédia, que evitava os melodramas. Não queria chorar na rua com a família. Não queria que os seus filhos se tornassem vítimas da ditadura. E a forma como decidiu fazer isso foi com o silêncio e um sorriso. É incrível", refletiu Fernanda Torres em Veneza.

"Anos depois, quando a minha mãe adoeceu com Alzheimer, senti que tinha que escrever o livro sobre ela", explicou Marcelo Rubens Paiva, que esteve presente na antestreia mundial.

"Foi muito importante escrever este livro nesse momento porque a democracia está em perigo em todo o mundo", acrescentou o escritor e colunista.

"O cinema é uma grande ferramenta contra o esquecimento. A literatura também", acrescentou Walter Salles.

Walter Salles com Fernanda Torres durante a rodagem

Na sua apresentação no Festival de Veneza, o realizador lembrou que, quando embarcaram neste projeto em 2016, o Brasil ainda não tinha entrado "nos quatro anos terríveis da extrema direita" que teve com o ex-Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022).

"Nunca pensei que a minha geração veria o ressurgimento da extrema direita", considerou.

Apesar de se concentrar nos anos da ditadura militar, "Ainda Estou Aqui" também é "um filme sobre o presente. Tivemos um presidente que elogiou um torturador do regime e acreditou que os militares salvaram o Brasil do comunismo... Quem vê o filme pensa: 'Isto está errado, não havia qualquer razão para perseguir esta família'.", disse Fernanda Torres à agência France-Presse (AFP) numa entrevista durante a campanha na temporada de prémios.

E acrescentou: “Vivemos num mundo volátil, onde as novas tecnologias estão a mudar as relações sociais. Em momentos como este, vemos um aumento no desejo de um governo autoritário para restaurar a ordem. Através da perspetiva desta família, o filme mostra o que isso significa num país com um governo violento que suspende os direitos civis.”

O interesse de Walter Salles foi motivado por ter conhecida a família Paiva.

“Estas eram lembranças da minha adolescência. A minha namorada de 13 ou 14 anos era amiga de uma das filhas do Paiva, portanto eu passava muito tempo com eles. Na casa deles era outro mundo, com discussão política livre, onde se podia falar de livros e discos censurados, onde se sonhava com um país mais inclusivo.”, recordou.

“Mas também descobri uma violência que não conhecia. O dia em que Rubens foi sequestrado, para nunca mais ser visto, deixou uma forte impressão quando tudo mudou para todos os que estavam naquele microcosmos. Qualquer que fosse a inocência que tivéssemos foi perdida naquele dia.", notou.

Escolha unânime do comité nacional para representar o Brasil nos Óscares e chegando ao grupo de 15 finalistas, o realizador mostrava-se cauteloso numa altura em que parecia muito improvável a entrada de Fernanda Torres ao grupo de Melhor Atriz.

"Os prémios funcionam para trazer mais gente para ver filmes, portanto estou feliz nesse sentido. Se [a nomeação] acontecer, seria ótimo. Se não, a vida continua. O meu princípio é que alguém que é otimista está mal informado.", rematava.

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