Apresentado na secção Competição do último Festival de Cannes e com as honras de abertura na 17ª edição do FEST: Novos Realizadores Novo Cinema em Espinho, "La Fracture" é um ensaio político que tem no humor a sua maior arma de arremesso, ainda que seja a compaixão humana que se destaca.
Catherine Corsini captou o retrato de uma sociedade fraturada num específico momento e num ainda mais específico local: no calor das violentas manifestações dos “coletes amarelos” em Paris e num hospital sob “fogo”, onde os enfermeiros e médicos tentam trabalhar durante um tremendo turbilhão social. Uma sala de espera das Urgências será o lugar de uma guerra entre classes e visões opostas que destacará heróis, mártires e vítimas.
Ainda sem estreia comercial confirmada em Portugal, o SAPO Mag conversou com a realizadora após a primeira exibição do filme na Riviera Francesa em julho, quando se mostrava indignada pela forma como estava a ser recebido por diversas classes, incluindo a política, após as reações precipitadas à partilha de frases sem contexto nas redes sociais, nomeadamente as de um encontro imaginário do Presidente Emmanuel Macron por um “colete amarelo”.
“La Fracture” é uma obra que retrata tantos problemas correntes da nossa sociedade de uma perspetiva quase tragicómica. Como conseguiu trabalhar esses diferentes elementos?
Não costumo contar histórias de pessoas que não venham do meu ponto de vista. Nesse aspeto, começo “Le Fracture'' com as personagens de Valeria Bruni Tedeschi e de Marina Foïs, porque elas aproximam-se do meu mundo. Nos meus dois filmes anteriores ["La belle saison", 2015; "Un amour impossible", 2018], abordei tempos diferentes, sendo que, e seguindo os moldes de uma obra de Nanni Moretti que aprecio muito – "Palombella Rossa" –, desejava usar o humor para abordar o compromisso e relação política. Recordo que fiz uma comédia em 1999 denominada “Nova Eva” que por si tinha um vínculo político, o que também me fez querer voltar e persistir nessa forma. E as personagens foram extraídas da minha própria vida, assim como a ideia deste filme. Tudo aconteceu quando eu e a minha companheira tivemos que passar uma noite nas Urgências. Apesar dos hospitais serem locais mais do que vistos no cinema, permanecem um espaço rico em relações e encontros com pessoas de classes e universos diferentes. E o curioso é que todos são tratados da mesma maneira. Observei todo este biótopo, os auxiliares, médicos e enfermeiros, e imaginei como isso poderia original um conjunto de enredos.
No fundo, isto é um filme sobre a fragilidade do Sistema Nacional de Saúde francês, já num tempo anterior à pandemia. Como é atualmente a situação?
A situação é terrível. O Sistema Nacional de Saúde já se encontrava mal antes da pandemia e depois dela ficou totalmente danificada. Basta só ver o caso do primeiro confinamento, onde assistimos e ouvimos pessoas aplaudir e encorajar os profissionais de saúde todas as noites, o que não aconteceu no segundo. Até mesmo o bónus atribuído pelo governo só foi dado ao departamento de reanimação, esquecendo por completo os outros.
Grande parte da ação decorre num só espaço. Poderemos encarar estas Urgências como uma representação de uma sociedade em colapso?
Quando começamos a fazer um filme, tentamos olhar para as personagens concebendo um cenário e modificando alguns procedimentos. Foi o que fiz com o hospital, criei nele uma tensão, um enredo, um espaço circundante de pessoas... sim, poderemos encarar isso como a representação de uma sociedade que atinge um limite.
Por vezes, para discutir questões políticas num filme é preciso manter uma certa distância. Em “La Fracture”, pelo contrário, sentimos a urgência do agora, quase como uma intervenção.
Mantive essa distância nos meus dois filmes anteriores, mas aqui tive o sentimento de querer “saltar para o meio do fogo” e isso fez com que várias pessoas não acreditassem no meu guião. O que me valeu foi a minha produtora [Elisabeth Perez] me ter apoiado desde a sua génese e ter-me garantido tudo o que necessitava para a sua produção. O que fiz foi usar a realidade à minha volta, tentar com isso alcançar um certo discurso proveniente dessa mesma realidade.
Tendo em conta o que se está a passar [a viralidade de frases sem contexto do filme divulgadas nas redes sociais], acredita que hoje em dia, num mundo cada vez mais polarizado e extremista, a comédia em cenários politizados é como um campo minado para ser trabalhado?
Sim, é verdadeiramente um campo minado, nisso tem razão. Tornou-se um trilho arriscado essa abordagem, plenamente criticado por tudo e por todos, incluindo os coletes amarelos. Mas tomei esses riscos com consideração e, pelo menos, consegui agradar aos profissionais de saúde com esta minha homenagem. Por um lado, não há que ter medo, porque se receássemos as críticas não faríamos nada.
Em relação ao movimento dos "coletes amarelos", como é que os encara e de que forma os representou no filme?
Li todos os livros possíveis, encontrei-me com imensos "coletes amarelos" e até mesmo usei algumas das suas palavras no filme... obviamente com a respetiva e devida autorização. É um movimento estranho porque não existe um líder concreto e está constantemente a desenvolver-se, mas senti-me, contudo, sensibilizada com as suas vidas. França é um país com uma tradição revolucionária, temos a vontade de rebelar-nos contra o que consideramos injusto na sociedade. Infelizmente, ninguém quer ouvir os “coletes amarelos” e os que estão dispostos a isso são os movimentos de extrema-direita e isso é uma pena. Muitos, que estão atualmente “enfiados” nos escritórios, poderiam ter a decência de ouvir os que eles têm para dizer e defender.
Quanto aos profissionais de saúde, mais especificamente os enfermeiros, abordou-os com um distinto heroísmo em todo aquele caos.
Há dois heróis que considero neste filme: o da personagem do colete amarelo - o sacrifício – porque o seu “ganha-pão”, o seu corpo, é completamente danificado no final; e a a enfermeira Kim, que se assume como a última imagem de “La Fracture”. Nesse sentido, queria homenagear os profissionais de saúde, os seus sacrifícios e a tremenda força conseguida perante os escassos meios.
Foi por isso que escolheu uma não-atriz para o papel de Kim?
Não foi bem uma escolha, porque inicialmente pensava numa atriz para o papel de Kim. Só que, durante os dois dias de trabalho de campo no hospital, fiquei a conhecer Aïssatou Diallo Sagna e percebi quão a grande mais-valia ela seria para o enredo. Ela trouxe uma carga dramática necessária e, vendo hoje, é indispensável ao filme.
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