"Os Miseráveis" foi o grande vencedor da 45ª edição dos César, os "Óscares franceses", atribuídos esta sexta-feira à noite em Paris.
Por esta altura, a sala Pleyel, onde decorreu a cerimónia, estava num "ambiente pesado", segundo o jornal Le Monde: momentos antes, Roman Polanski fora anunciado como o vencedor na categoria de Melhor Realização pelo filme "J’accuse - O Oficial e o Espião".
O anúncio foi recebido com poucas palmas e levou à saída de dezenas de pessoas da sala Pleyel, incluindo Adèle Haenel, visivelmente transtornada: em novembro do ano passado, ela tornou-se a primeira atriz francesa de renome a denunciar ter sido vítima de abuso sexual na adolescência por parte do realizador Christophe Ruggia, quebrando um silêncio e tolerância em relação ao tema na indústria.
Numa entrevista recente ao New York Times, a atriz disse que premiar Polanski equivaleria a "cuspir no rosto das vítimas", numa referência às polémicas que envolvem o realizador, condenado por violação em 1977 e recentemente alvo de novas denúncias.
Na cerimónia esteve presente o ministro da Cultura, Franck Riester, que dissera de manhã que seria um "sinal negativo para a tomada de consciência" sobre a violência machista se Pokanski ganhasse o prémio como realizador, embora não visse inconveniente em que o próprio filme fosse distinguido.
Apesar de liderar com 12 nomeações, "J’accuse" só venceu mais dois prémios: argumento adaptado (também para Polanski, partilhado com o autor do livro, Robert Harris) e guarda-roupa.
Muitos dos discursos referiram-se às atuais tensões no cinema francês na era do #MeToo e a anfitriã, a comediante Florence Foresti, brincou no início, descrevendo "J'accuse", que retrata o caso Dreyfus - um escândalo político que dividiu a França entre 1894-1906 - como um filme sobre "pedofilia nos anos 70".
Mas mesmo antes da grande gala do cinema francês, sentia-se uma forte pressão.
A própria Academia de Cinema Francesa foi abalada por uma grave crise após várias personalidades do cinema criticarem a falta de democracia, a opacidade, a ausência de diversidade e de paridade na instituição, o que, juntamente com a controvérsia das nomeações para o filme de Polanski, levou à demissão, a 13 de fevereiro, do conselho de administração presidido desde 2003 pelo produtor Alain Terzian.
Três horas antes do início da cerimónia, realizou-se uma manifestação convocada por várias associações feministas, entre as quais "Osez le féminisme" e o coletivo feminista #NousToutes, para protestar contra as muitas nomeações de "J'accuse" e o destaque ao seu realizador.
Estiveram presentes entre 300 e 400 manifestantes, que adotaram o título do filme contra o próprio realizador e repetiram palavras de ordem como "Prendam Polanski".
Várias pessoas com sinalizadores tentaram aproximar-se do edifício, protegido pela polícia e grades. Os que tentaram derrubá-las foram repelidos pelos agentes com gás lacrimogéneo.
No dia anterior, o cineasta franco-polaco anunciara em comunicado a sua ausência para "não afrontar um autoproclamado tribunal da opinião pública, disposto a espezinhar os princípios do Estado de direito para que o irracional triunfe de novo".
O produtor do filme, Alain Goldman, lamentou a "escalada de declarações e de comportamentos inadequados e violentos", em que englobava o ministro da Cultura, e anunciou o boicote de toda a equipa do filme à cerimónia.
O protagonista, o vencedor do Óscar Jean Dujardin, colocou nas redes sociais uma imagem do filme e aludiu ao seu tema de perseguição: "Gostaria de recordar que 'J’accuse' é o título de um artigo muito famoso de Emile Zola. Tenham uma boa noite!"
Um retrato da miséria moderna escondida na França
Após vencer o Prémio de Júri do Festival de Cannes e ser nomeado para o Óscar de Filme Internacional, "Os Miseráveis" foi consagrado pelos César.
Inspirado pelo célebre livro de Victor Hugo, publicado em 1862, o filme fala dos novos "miseráveis", os que vivem na periferia de Paris, retratando as relações de ambiguidade entre diferentes gangues e a polícia, e uma tensão que explode quando uma detenção com abuso de autoridade corre mal e um drone filma toda a operação.
LEIA A CRÍTICA "OS MISERÁVEIS".
Além do prémio para Melhor Filme, foi ainda distinguido pela montagem e viu Alexis Manenti receber o prémio de Ator Revelação.
Um quarto prémio, não contabilizado para o palmarés final, foi o de Melhor Filme votado pelo público.
Ao receber a principal distinção da noite, o realizador Ladj Ly disse que tinha "orgulho por ter dado visibilidade à minha cidade, Clichy-Montfermeil. Os miseráveis não são apenas os habitantes das cidades. Infelizmente, a pobreza afeta cada vez mais mulheres francesas. Muitas vezes perguntaram-me qual era a moral deste filme, é simples: vivemos num país ferido e é a pobreza que divide os franceses. É hora de baixar as armas, é hora de nos unirmos, é hora de mostrar que todos fazemos parte do mesmo país. A França é o nosso país, vamos torná-lo um grande país. O único inimigo não é o outro, é a miséria".
Apesar do discurso forte, tudo passou para segundo plano por causa da polémica Polanski, que ensombrou os restantes dos vencedores dos Césares, nomeadamente Roschdy Zem (melhor ator por "Roubaix, Une Lumière", de Arnaud Desplechin), Anaïs Demoustier (melhor atriz por "Alice e o Presidente", de Nicolas Pariser), Swann Arlaud (melhor actor secundário por "Graças a Deus) e a lendária Fanny Ardant (melhor atriz secundária por "A Bela Época").
"A Bela Época", de Nicolas Bedos, também arrecadou os prémios de melhor argumento original e melhor direção artística, enquanto o incontornável filme sul-coreano e vencedor dos Óscares "Parasitas", de Bong Joon-Ho, impôs-se como melhor filme estrangeiro.
Césars 2020: a lista completa de premiados
Melhor Filme: "Os Miseráveis", de Ladj Ly
Melhor Realização: Orman Polanski por "J'accuse"
Melhor Atriz: Anaïs Demoustier ("Alice e o Presidente")
Melhor Ator: Roschdy Zem ("Roubaix, une lumière")
Melhor Atriz Secundária: Fanny Ardant ("A Bela Época")
Melhor Ator Secundário: Swann Arlaud ("Graças a Deus")
Melhor Esperança Feminina: Lyna Khoudri ("Papicha")
Melhor Esperança Masculina: Alexis Manenti ("Os Miseráveis")
Melhor Filme Estrangeiro: "Parasitas", da Coreia do Sul, de Bong Joon-ho
Melhor Argumento Original: "A Bela Época"
Melhor Argumento Adaptado: "J'accuse"
Melhor Longa-Metragem de Animação: "J’ai perdu mon corps", de Jérémy Clapin
Melhor Documentário: "M", de Yolande Zauberman
Melhor Primeiro Filme: "Papicha", de Mounia Meddour
Melhor Direção Artística: "A Bela Época"
Melhor Montagem: "Os Miseráveis"
Melhor Fotografia: "Retrato da Rapariga em Chamas"
Melhor Guarda-Roupa: "J'accuse"
Melhor Banda Sonora: "J’ai perdu mon corps"
Melhor Som: "Le chant du loup - Ameaça em Alto Mar"
Melhor Curta-Metragem: "Pile Poil" de Lauriane Escaffre e Yvonnick Muller
Melhor Curta-Metragem de Animação: "La Nuit des sacs plastiques", de Gabriel Harel
César do público: "Os Miseráveis", de Ladj Ly.
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