O cineasta José Vieira tem dedicado a sua filmografia à emigração portuguesa para França, foi pioneiro no retrato dos que fugiram "a salto", nos anos 1960/70, e quebrou silêncios sobre a história dos que foram parar aos "bidonvilles".

"É a minha vida, foi a minha vida, simplesmente por isso, simplesmente mostrar por onde a gente passou. Quer dizer, é a minha vida e a de milhares de pessoas. Acho que disse no [documentário] 'Fotografia Rasgada' que 'é procurando as nossas histórias na memória dos outros que se constrói uma memória coletiva', e acho que foi assim que eu trabalhei sempre", disse à agência Lusa o realizador de 59 anos.

O seu cinema volta a ser mostrado em Portugal, em agosto, com a exibição de "A Ilha dos Ausentes" (2016), no festival Filmes do Homem, em Melgaço, que fez uma retrospetiva do cineasta na primeira edição, em 2014.

Licenciado em Sociologia, José Vieira aprendeu a filmar no terreno e entrou no mundo do documentário como "uma forma de militância", porque se apercebeu de que as pessoas com quem se manifestava nas ruas "não conheciam a história da emigração portuguesa" e, no princípio dos anos de 1980, "não havia praticamente nenhum filme" sobre o tema, exceto "O Salto" (1967), de Christian de Chalonge (foto em cima).

"O ponto de partida para mim foi ter passado por uma história tão complicada, tão dolorosa, podemos dizer assim, e não haver nada sobre isso. E não era só o facto de não haver nada, era como se a gente não tivesse história nenhuma, como se os portugueses tivessem chegado de avião, como se uma cegonha os tivesse trazido para cá", recordou o autor de "A Ilha dos Ausentes" (foto ao lado) e "A Primavera do Exílio" (2011).

O seu primeiro filme, "Weekend en Tosmanie" (1985), falava já sobre a comunidade portuguesa em França e "foi muito mal recebido", porque os portugueses "não queriam ver a realidade", da mesma maneira que foi mal recebida a exposição que organizou em 1989, "O Sonho Português", na qual uma réplica de uma barraca levou a que as pessoas fossem embora, "nem queriam ver aquilo".

Alguns anos depois, "a vergonha" deu lugar a "uma história coletiva" com os testemunhos recolhidos para o documentário "A Fotografia Rasgada", incluído na série de filmes "Gente do Salto" (2005), que retratou as memórias dos portugueses que fugiram para França clandestinamente nos anos 1960.

"As pessoas sentem-se culpadas do que viveram e acho que um dos trabalhos que eu fiz é as pessoas sentirem que é uma história coletiva e não a culpa de cada um. Por exemplo, o meu pai sempre viveu com aquela culpa de nos ter trazido para cá [Paris] (...). Não é só uma história individual, é uma história coletiva, social e política. É isso que tento fazer, não andar a contar histórias da carochinha ou a fazer chorar as pessoas sobre a saudade", explicou.

Oriundo da vila de Oliveira de Frades, no distrito de Viseu, José Vieira chegou ao bairro de lata de Massy, nos arredores de Paris, em 1965, e aí ficou cinco anos, tendo reencontrado o mesmo tipo de barracas no mesmo local, quase meio século depois, desta vez ocupadas por imigrantes romenos, algo que filmou em "Souvenirs d'un Futur Radieux" (2014).

No filme, o português afirma ter, "por vezes, a impressão de filmar" as suas próprias "memórias da infância" e, na conversa com a Lusa, explicou que "há coisas que são iguais", até "o domingo no bairro de lata", em que, "la la la la la la", era "sempre o mesmo disco", Maria Albertina, Teixeirinha ou Roberto Carlos, só que, hoje, "o Roberto Carlos chama-se Nicolae Guta" e é o ídolo dos romenos.

"Aquelas cantigas nostálgicas que as pessoas trouxeram da aldeia a passar em 'boucle' [em 'loop'], as crianças a brincar com as mesmas coisas, o cheiro da lama misturado com aquela porcaria que as pessoas deitam de dentro de casa para fora. O mesmo cheiro, exatamente o mesmo", descreveu o também realizador de "Drôle de Mai" (2008) e "Le pays où on ne revient jamais"(2005).

Ainda assim, "fora a vergonha, na escola, de morar no bairro da lata" e da "mentira em Portugal, de não se poder dizer onde se morava", José Vieira passou "uma infância feliz", porque "um bairro da lata para crianças é um terreno de jogos imenso", lembrando que o mais difícil foi para os pais e as irmãs adolescentes, num meio com "muitos homens, muita bebedeira, violência - um western".

Para o realizador, a emigração dos anos de 1960 foi uma "história altamente política tanto do lado de Portugal como da França" porque, "além da ditadura, da miséria e da guerra colonial", na parte portuguesa, "a partir de [19]64 a França vai favorecer a emigração clandestina dos portugueses", porque eram "mais trabalhadores, mais submissos e mais bem-educados pelo fascismo".

Hoje, o drama da emigração persiste, mas "há uma rejeição dos estrangeiros".

Atualmente, apesar das dificuldades em arranjar financiamentos de apoio à produção, José Vieira está a montar um filme sobre "como o governo fascista se apoderou dos baldios [em Portugal] e as pessoas ficaram completamente espoliadas", e vai continuar a filmar a aldeia de Adsamo, na Beira Alta, que retratou em "O Pão que o Diabo Amassou" (2012), "para ver se se vai safar ou se vai desaparecer completamente".

"É a infância. Portugal é a minha infância. A partir de 2010 comecei a querer trabalhar mais em Portugal, a falar daquelas terras de onde vem a imigração [para França]. O que é que ainda existe do Portugal que a gente deixou? Esse Portugal está a desaparecer", concluiu o homem que, em criança, quis ser arqueólogo e hoje diz ser "arqueólogo das aldeias portuguesas".

No ano passado, o cineclube de Abrantes, Espalhafitas, dedicou um ciclo ao cinema de José Vieira, e o festival IndieLisboa estreou "A ilha dos ausentes", que definiu como um 'road movie', "uma memória de ausência".

A obra de José Vieira deverá ser de novo alvo de retrospetiva em Portugal, até ao final do ano.