Em setembro de 2021, aos 91 anos, Clint Eastwood apareceu não apenas a realizar e a representar, mas também a cavalgar e até a dar alguns socos no seu novo filme, um western chamado "Cry Macho - A Redenção".
Nascido a 31 de maio de 1930, Clint Eastwood celebra 92 anos esta terça-feira e pela longevidade e pelo impacto que extravasaram as qualidade de ator e realizador para se tornar um ícone cultural da América, nunca existiu nem voltará a existir outra personalidade como ele no cinema: esta é a oitava década de carreira, sete das quais como estrela de primeiro plano e, graças a uma gestão criteriosa dos projetos, com poucos períodos de insucesso.
E sem pensar na reforma: fiel ao seu cinema e confirmando a lenda, avançou com a rodagem de "Cry Macho", o seu 39.º filme como realizador, quando a indústria de Hollywood ainda estava em grande parte paralisada pela pandemia da COVID-19... e terminou um dia mais cedo do que estava previsto.
Enquanto ator, tantas vezes lacónico e estóico, Clint Eastwood tornou-se um símbolo da masculinidade, individualismo e até violência, mas muitos dos filmes que o revelaram como um realizador culto, sensível e ousado, são preenchidos por debates interiores que questionam e até rejeitam esses valores: depois de ter começado por ser o "Homem Sem Nome" dos "western spaghetti" da "Trilogia dos Dólares" e o "fascista" Dirty Harry, transformou-se num "autor" admirado pelas crítica francesa e a seguir consagrado pelos Óscares.
A carreira também resiste às polémicas, desde as acusações de violência excessiva e até de fascismo nos primeiros filmes, até à sua representação do racismo em "Gran Torino" (2008) e do belicismo em "Sniper Americano" (2014).
Também é uma intrigante e controversa figura pública: "Mayor" [presidente da câmara] da cidade de Carmel entre 1986 e 1988, na sua única incursão pela política ativa, e frequentemente associado ao valores conservadores do Partido Republicano, descreve-se a si mesmo com um partidário do libertarismo (uma filosofia política que assenta o valor político e moral fundamental na liberdade individual) e um "liberal nos costumes e conservador fiscal antes de isso se tornar moda".
Não encaixando em análises simplistas, é contra o intervencionismo externo dos EUA, mas também pró-escolha e a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo; do controlo "até certo ponto" da posse de armas e da existência de alguns apoios sociais; um defensor da conservação ambiental e das energias alternativas; e ao contrário de muitos conservadores, não acreditando em Deus e dizendo encontrar a espiritualidade na natureza, defende um "moralismo" civil e não fundamentado em valores religiosos.
Primeiros anos de rejeição e dois encontros decisivos
Nascido em 1930, Clint Eastwood ainda atravessou a Grande Depressão económica (1929-1941) e o impacto da Segunda Guerra Mundial nos EUA (1941-1945) e da Guerra da Coreia (1950-1953) antes de chegar a Hollywood em 1954.
"A Vingança do Monstro" (1955) foi o primeiro filme, mas apesar da sua figura e 1m93, os primeiros papéis pela mesma altura no cinema foram insignificantes, como o do 'primeiro saxão' (não creditado na ficha técnica) em "Lady Godiva" ou o 'chefe do esquadrão de jato' (também não creditado) em "Tarântula, a Aranha Gigante".
Após muitas rejeições pela rigidez e por falar entre os dentes, características que o distinguiriam mais tarde, a popularidade chegaria com a televisão e a série "Rawhide" em 1959, um trabalho rotineiro e repetitivo com poucas folgas onde se cansava a interpretar "o herói que beija velhinhas e cães e é gentil com toda a gente".
Durante os primeiros anos de carreira, Clint Eastwood também se dedicou a ver filmes estrangeiros num cinema em Western Ave. (Los Angeles). Foi por isso que, após começar por recusar no final de 1963 ir a Espanha fazer um western porque queria tirar férias e sabia que o projeto tinha sido rejeitado por vários atores, soube reconhecer no argumento de "The Magnificent Stranger" as influências de "Yojimbo, o Invencível" (1961), de Akira Kurosawa, o seu filme preferido na época.
Foi o primeiro momento decisivo da sua carreira: o realizador do projeto era Sergio Leone e o título viria a ser alterado para "Por Um Punhado de Dólares" (1964).
Sucederam-se rapidamente "Por Mais Alguns Dólares" (1965) e "O Bom, o Mau e o Vilão" (1966). E quando "Rawhide" foi cancelado, Clint Eastwood regressou ao cinema americano, não ainda como uma estrela mas já com outro estatuto.
Entre westerns, filmes de guerra, policiais e até o musical "Os Maridos de Elizabeth" (1969), pelo qual foi muito gozado, deu-se o segundo encontro decisivo para a carreira: "A Pele de Um Malandro" (1968), o primeiro de cinco filmes em que foi dirigido por Don Siegel.
Com este realizador, Clint Eastwood continuou a evoluir na construção da sua "persona" cinematográfica em "Os Abutres Têm Fome" (1970), "Ritual de Guerra" (1971) e "Os Fugitivos de Alcatraz" (1979), mas principalmente "A Fúria da Razão" (1971), a primeira aparição no cinema do frontal e pouco ortodoxo Inspetor Harry Callahan (Dirty Harry), um sucesso gigantesco muito imitado em que a personagem colou-se-lhe como uma segunda pele (tal como as acusações de fazer a apologia do fascismo) nas quatro sequelas e noutros filmes.
Um realizador culto, sensível, ousado... e exímio gestor da carreira
Em 1971, Clint Eastwood estreou-se na realização com um "thriller» muito elogiado, "Destinos nas Trevas", que inaugurou uma nova faceta na carreira e de maior controlo artístico, que começou a ser concretizada quatro anos antes, quando ele e o seu conselheiro financeiro Irving Leonard usaram os ganhos da "Trilogia dos Dólares" para fundar a The Malpaso Company, que produziu logo o primeiro filme americano após o regresso de Itália, "À Sombra da Forca" (1968).
Nos 20 anos seguintes, o seu percurso ganhou gradualmente estatuto de "autor" na Europa, principalmente entre os franceses, graças a filmes como "O Pistoleiro do Diabo" (1973), "O Rebelde do Kansas" (1976), "Bronco Billy, o Aventureiro" (1980), "A Última Canção" (1982), "O Justiceiro Solitário" (1985), que se reforça com "Bird - Fim do Sonho" (1988, apenas atrás das câmaras), um "biopic" sobre Charlie Parker em que materializou a sua paixão pelo jazz, e "Caçador Branco, Coração Negro» (1990).
Ao mesmo tempo, fez, ainda como realizador, alguns títulos de "compromisso" e, provavelmente por isso, menos elogiados e alguns completamente esquecidos, como "A Escalada" (1975), "Harry - O Implacável" e "Impacto Súbito" (1976 e 1983, o terceiro e quarto "Dirty Harry"), "Barreira de Fogo" (1977), "Firefox" (1982), "O Sargento de Ferro" (1986) e "Rookie - Um Profissional de Perigo" (1990).
A Malpaso foi uma peça essencial nesta gestão criteriosa da carreira e também nesse controlo que procurava: praticamente os últimos filmes em que sua produtora não esteve envolvida foram "O Desafio das Águias" (1968), ao lado de Richard Burton, onde constatou o que achava ser dinheiro desperdiçado nas grandes produções de Hollywood, e "Heróis por Conta Própria" (1970), em que sentiu que os 20 minutos cortados pelo estúdio davam mais profundidade às personagens e tornavam o filme melhor (em processo de divórcio e a querer evitar partilhar lucros, a Malpaso só não aparece nos créditos de "Bronco Billy", recorrendo a uma empresa criada pelo colega Robert Daley).
Numa reação à forma como foram promovidos "Destinos nas Trevas" e o seu segundo filme como realizador, "Ontem ao Fim do Dia" (1973), mas também "A Última Golpada" (1974), realizado por Michael Cimino e em que achou ter sido ofuscado por Jeff Bridges, a "casa" de quase todos os filmes a partir de 1976 foi a Warner Bros., embora com um acordo suficientemente flexível para lhe permitir trabalhar com outros estúdios, como aconteceu em "Na Linha de Fogo" (1993), também o último filme até agora em que participou sem o envolvimento formal da Malpaso.
Conhecido por fazer os seus filmes na "família Malpaso" num espaço de tempo muito apertado, recorrendo a poucos "takes" e dentro do prazo e orçamento (quando não mesmo antes e abaixo), a descrição da sua relação com os responsáveis da Warner feita por um colaborador de muitos anos também oferece uma síntese possível do seu percurso artístico: "Ele faz filmes que são interessantes para ele, que acha que têm um público... e eles concordam com isso e financiam e distribuem."
Ironicamente, o desafio de avançar com o recente "Cry Macho" durante a pandemia, que teve críticas tépidas e foi um fracasso de bilheteira, pode ter um desenvolvimento inesperado: o estatuto de intocável dentro do estúdio pode ter os dias contados após o recente acordo de fusão entre a Discovery e a WarnerMedia.
Segundo um artigo do Wall Street Journal [WST, de acesso pago], o novo CEO da multinacional colocou em causa a decisão de dar luz verde ao filme, que custou 33 milhões de dólares e arrecadou apenas 15,5 milhões de receitas de bilheteira a nível mundial.
Descrito como um homem "não especialmente paciente", David Zaslav terá perguntado à liderança do estúdio qual a racionalização para financiar um projeto que sabia que não seria rentável, ao que esta terá respondido que se sentia em dívida por causa da relação de décadas e a capacidade consistente de fazer filmes dentro do orçamento e cumprindo os prazos.
Na reação, avançou o WST, Zaslav terá citado uma frase famosa do filme "Jerry Maguire" (1996), com Tom Cruise: "It’s not show friends, it’s show business". Que, em bom português, equivale ao "amigos, amigos, negócios à parte"...
A consagração artística americana e sem plano de reforma
Um filme anti-violência e western revisionista dedicado tanto a Sergio Leone como a Don Siegel, "Imperdoável" (1992), o 16º filme como realizador, sobre um pistoleiro retirado e desiludido que aceita vingar uma prostituta que foi desfigurada, marcou a consagração como "autor" junto da crítica e dos Óscares que sempre o tinham ignorado: Melhor Filme, Realização, Ator Secundário (Gene Hackman) e Montagem. Foi ainda nomeado pela primeira vez para a estatueta de Melhor Ator.
Sempre mestre na gestão da imagem, soube reconhecer a passagem dos anos, primeiro reformando Harry Callahan ao quinto filme com "Na Lista do Assassino" (1988), cuja realização confiou ao homem de confiança e duplo de tantos filmes Buddy Van Horn, depois com o envelhecido agente dos serviços secretos em "Na Linha de Fogo" (1993), arriscando a seguir um maduro papel romântico em "As Pontes de Madison County" (1995), ao lado de Meryl Streep.
Já no século XXI e após alguns filmes menos conseguidos, regressou com um "tour de force" de títulos absolutamente essenciais: "Mystic River" (2003), "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" (2004), com que triunfou pela segunda vez nos Óscares, ou "Cartas de Iwo Jima" (2006), o melhor dos dois filmes sobre a Batalha de Iwo Jima, complementando "Flags Of Our Fathers - As Bandeiras dos Nossos Pais" (2006).
Em 2008, "Gran Torino", anunciado na época como a despedida como ator, surpreendeu Hollywood e tornou-se o maior sucesso de bilheteira da carreira, provando como, aos 78 anos, o seu nome ainda arrastava multidões para os cinemas.
O papel de Walt Kowalski, um veterano da Guerra da Coreia forçado pelos vizinhos imigrantes a confrontar os seus próprios preconceitos, era uma síntese dos duros que interpretara durante décadas, mas com a sensibilidade do realizador de um "Imperdoável", ainda que Bee Vang, que partilhou muitas cenas com o ator e realizador, tenha criticado o filme em 2021 por contribuir para a normalização do racismo anti-asiático nos EUA.
Apesar de o definir como um filme anti-guerra, Clint Eastwood também não se livrou de críticas pelo forma como retratou o belicismo do seu país em "Sniper Americano" (2014), através da história de Chris Kyle, um atirador furtivo que pagava um grande preço ao tornar-se herói. Mas o filme sobre os mais sacrificados pelos EUA, os militares e as suas famílias, tornou-se o maior e mais surpreendente sucesso de bilheteira como realizador... aos 84 anos.
Sem nada por provar e uma lenda ovacionada durante minutos em Cannes e noutras cerimónias, Clint Eastwood expressou em várias entrevistas o desejo de continuar a trabalhar enquanto receber projetos interessantes, não entendendo porque é que cineastas tão importantes com Frank Capra e Billy Wilder, que viveram para lá dos 90 anos, se reformaram cedo (respetivamente aos 64 e 76).
Fiel a esse princípio, continua a trabalhar muito, principalmente atrás das câmaras: "A Troca" (2008), "Invictus" (2009), "Hereafter - Outra Vida" (2010), "J. Edgar" (2011) e "Jersey Boys" (2014).
Sabendo interpretar o sucesso de "Sniper Americano", tem continuado a representar no grande ecrã, como poucos, o espírito em que os americanos mais gostavam de se reconhecer ou a luta contra as injustiças do sistema, em "Milagre no Rio Hudson" (2016), "15:17 Destino Paris" (2018) e "O Caso de Richard Jewell" (2019).
Apesar de ter reduzido claramente a presença à frente das câmaras depois dos 74 anos e "Million Dolar Baby", também acabou por não cumprir a promessa de se retirar completamente: além de "Gran Torino" e enquanto aguardamos "Cry Macho", entrou em "As Voltas da Vida" (2012, realizado pelo amigo Robert Lorenz) e dirigiu "Correio de Droga" (2018), um olhar crítico e muito subtil para uma sociedade que, por vezes, não sabe tratar os seus idosos com dignidade, através da história verídica de um horticultor de 90 anos, veterano da Segunda Guerra Mundial, que começava a transportar cocaína de um cartel mexicano. Entre a personagem e a sua própria mitologia, é uma das melhores interpretações da carreira.
CLINT EASTWOOD: A CARREIRA IRREPETÍVEL EM IMAGENS.
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