Já se passaram três décadas desde que o filme seminal “Como Água Para Chocolate” gerou aplausos e lágrimas, marcando um antes e um depois no cinema cubano.

O filme foi catártico num país que mal reconhecia os direitos dos homossexuais.

Mas o ator protagonista, Jorge Perugorria, diz que Cuba retrocedeu no que diz respeito à liberdade de expressão também invocada pelo filme.

O Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano, que abre sexta-feira em Havana, prestará duas homenagens ao filme, que foi aplaudido de pé na sua estreia em 1993 e nomeado no ano a seguir para o então Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Vladimir Cruz e Jorge Perugorria visitam o set onde foi rodado "Como Água Para Chocolate" há 30 anos, em Havana, a 28 de novembro

Perugorria, de 58 anos, conversou com a France Presse (AFP) sobre o filme juntamente com o restante elenco num emocionante reencontro no restaurante La Guarida, uma mansão no centro de Havana que nos primeiros anos da revolução foi subdividida em apartamentos e serviu de cenário para o filme.

No terraço da mansão, Perugorria relembra a “catarse coletiva” que o filme provocou.

“Era como se o público tivesse necessidade de ver aquele filme... porque talvez abordava o que muitos tinham na cabeça... frustrações” e questões enterradas e fora do alcance do público, recorda.

Jorge Perugorria

Na altura, após o colapso da União Soviética, uma grave crise económica - chamada de "período especial" - atingiu a ilha, e uma política obscura que marginalizava homossexuais e dissidentes estava apenas a começar a ser reavaliada.

No filme, Diego, um refinado amante de arte homossexual, torna-se amigo de David, um ferrenho defensor do Partido Comunista no poder, num ambiente de censura e homofobia.

Metáfora impossível

“Aquele abraço final”, entre Diego e David no final do filme, “é uma canção, uma reconciliação entre os cubanos”, mas “está mais distante hoje do que há 30 anos”, diz Perugorria, que interpreta Diego.

“As diferenças entre os cubanos aumentaram” e o abraço “tornou-se uma metáfora quase impossível”, acrescenta.

Para Vladimir Cruz, de 58 anos, que fez o papel de David, o filme identificou tanto os reprimidos quanto os repressores.

“Tivemos experiências de pessoas que saíram do cinema e disseram: 'Já agi assim, fui intolerante, reprimi os homossexuais'”, lembra Cruz entre fotos e esculturas preservadas do set na mansão.

Vladimir Cruz

A história mostra como “o direito de participar na sociedade foi tirado daqueles que pensavam diferente. E nesse sentido, penso que a sociedade cubana... progrediu, mas ao nível oficial decaímos”, diz Cruz.

Ele festeja a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2022.

“Mas quem pensa diferente, (mesmo que) um milímetro, em relação à ideologia predominante ou à ideologia oficial, continua a sofrer os mesmos problemas que Diego teve e que o levaram a emigrar”, diz Cruz.

Quase 500 mil cubanos, ou quase 5% da população, deixaram a ilha desde 2021 numa onda sem precedentes, de acordo com dados da imigração dos EUA.

Perugorria concorda: “Hoje, assim como a exposição de German [outra personagem do filme] foi censurada há 30 anos, os filmes e as exposições ainda são censurados”.

Cuba precisa de “uma política cultural que seja para todos na nossa diversidade, na nossa complexidade, e não apenas para um grupo que pensa de uma maneira”, diz Perugorria.

Pessoas encurraladas e assediadas

Vladimir Cruz (David), Mirta Ibarra (Nancy), Jorge Perugorria (Diego) e Joel Angelino (German) posam durante uma visita ao local onde decorreu há 30 anos a rodagem de "Como Água Para Chocolate"

“'Como Água Para Chocolate’ defende isso” e continua “atual”, sustenta Perugorria, citando o caso dos mais de 300 jovens que organizaram um protesto sem precedentes pela liberdade de expressão em novembro de 2020.

Boa parte deles emigrou.

“É triste pensar que há pessoas que não apenas se vão embora, mas são expulsas, porque são encurraladas e assediadas”, afirma.

Por trás das câmaras, construiu-se mais uma história fraterna entre Tomas Gutierrez Alea (1928-1996) e Juan Carlos Tabio (1943-2021), corealizadores do filme.

Gravemente doente, Gutierrez Alea enfrentou uma cirurgia durante as filmagens, mas voltou ao set quatro dias depois. Os atores contam que ele subia lentamente as grandes escadas da mansão para dirigir pela manhã, depois Tabio seguia detalhadamente as recomendações do amigo no set.

“Essa história de amizade entre estes dois grandes artistas e o amor pelo cinema também teve muito peso no filme”, diz Perugorria.