13 de julho
Em 2016, uma biografia pouco convencional da banda russa Kino guiava-nos por uma poética e alternativa dimensão que auferia liberdade passageira num país em que o modelo ocidental era visto como uma afronta aos costumes deixados por anos e anos de sovietismo.
"Leto", que entrou na competição pela Palma de Ouro do festival de Cannes, era um filme traiçoeiro onde um grupo musical presenteava rock que, afinal, não era rock, mesmo que assim fosse entendido. E adquiria outro significado por causa da prisão domiciliária do seu realizador - Kirill Serebrennikov -, dissidente russo que foi impedido de ir ao Festival.
Passados cinco anos e ainda interdito, o cineasta “retorna”, espiritualmente, à corrida à Palma com uma obra mais abstrata, mais ácida para com a sua própria luta, "Petrov's Flu", um engripado exemplar de como a mensagem, por vezes, atropela o próprio Cinema.
"Leto" era jovialidade, "Petrov's Flu" é a negação, com um punhado de pretensão e "chico-espertices" a dar origem a um filme labiríntico preenchido maioritariamente por "travellings" e cenários não materializados, cozido por "flashbacks" e histórias paralelas, combinando cinema de género ou simplesmente caótico estapafúrdio.
Há um gesto de ódio e de raiva em todo o trabalho de Serebrennikov, como se tivesse ficado possuído por esses sentimentos que o impossibilitam de se exprimir. O resultado é isso mesmo, uma obra confusa porque é isso que quer, uma "gripe" peçonhenta que cruza extraterrestres, escritores falhados, mortos-vivos e muita bebedeira pelo meio. No final, a explicação é simples e insatisfatória, tendo em conta que passámos por uma viagem aos trambolhões durante duas horas e meia de filme.
Mas continuando nessas experiências de cinema de género em Cannes, fomos ao encontro do muito aguardado "Titane", a segunda longa-metragem de Julia Ducournau ("Raw"). E descobrimos uma prolongação dos fetiches sexualizados e titânicos de "Crash", de David Cronenberg (1996), conirmando que a jovem realizadora se mostra uma aluna aplicada em matéria de "body horror" "cronenbergueano", metamorfoseando corpos de uma forma visceral e manifestamente distorcidos em metáforas físicas e visuais.
Oscilando entre o impressionável ou o ridículo da série B, o enredo revela uma assassina em série que copula com um carro e cuja existência se altera drasticamente, dando origem a uma fusão, uma criatura que reúne os seus maiores medos e igualmente as suas maiores fantasias. Ao filme junta-se uma diluição da identidade de género e desempenhos impactantes de Agathe Rousselle e Vincent Lindon. O aço como ambição corporal tornou-se uma das obras atualmente mais comentadas no Festival de Cannes e está comprada para Portugal pela distribuidora Alambique.
Uma outra surpresa aconteceu, desta vez em Sessão Especial, com “Mi Iubita Mon Amour”, a estreia de Noémie Merlant na realização de longas-metragens.
A atriz de "O Retrato de uma Rapariga em Chamas" entrega-nos um romance acidental ocorrido na Roménia entre uma francesa, prestes a casar, e um jovem de etnia cigana. Tudo normal, não fosse a diferença de idade entre os dois, ela na proximidade dos 30 anos, ele com somente 17. Nada que impeça o nascimento do romance, o seu crescimento e a apropriação do seu espaço e tempo.
Com uma realização segura e um toque festivo e estival graças à banda sonora, o seu ponto mais discutido, a fuga dos conflitos óbvios que a trama poderia endossar, auferem mais significado a “Mi Iubita” do que somente um “I Love You” em romeno.
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