Apresentado no Festival de Berlim de 2019, o filme “Marighella” revela como realizador o popular ator Wagner Moura, que aborda o ativismo e a morte de Carlos Marighella (vivido por Seu Jorge), um ex-deputado que se virou para a luta armada para libertar o Brasil de uma ditadura militar. Este período da história do país continua rodeado de grande controvérsia, não faltando quem defenda que não se tratou de uma ditadura e  Marighella não foi um patriota.

Surpreendemente, Bruno Gagliasso, mais conhecido como galã das telenovelas, surge como o inspetor Lúcio e o vilão desta história do passado que dialoga com o presente, particularmente o do Brasil presidido por Jair Bolsonaro.

O ator conversou com o SAPO Mag sobre a personagem, a ambição de Wagner Moura e o Brasil que tanto ama mas o entristece. Um encontro onde que se falou principalmente sobre política, tal como apela o próprio filme.

Gostaria de começar pela sua inspiração. Mencionou no Festival de Berlim que o seu Lúcio baseou-se em Sérgio Paranhos Fleury, um infame agente da DOPs [Departamento de Ordem Política e Social].

Respondendo bem direto, não é uma referência a uma personagem e sim a um conjunto de personagens daquela época. Basta só ver quem Bolsonaro elogia para entendermos quais são as inspirações para esta personagem numa época tão difícil. É muito difícil que uma personagem tão odiosa, tão má e desumana, esteja tanto em destaque, basta apenas "espreitar" [a capital] Brasília e verificar tantos políticos em cargos públicos que soam como esta personagem. O filme em que participei é atual e não de época. Esta temática continua atual e é algo que ainda poderá voltar a acontecer.

Sim, um filme sobre uma personalidade passada, mas que dialoga com o nosso presente, isto é, com o Brasil atual.

Sem dúvida, é um filme de uma força muito grande, quase uma necessidade. Precisamos mais do que nunca que este filme seja visto e que bom que vai ser visto em Portugal, assim como nos EUA, Berlim, Cuba e, claro, também no Brasil.

Mas o que se passa com a estreia no seu país? O que está a impedi-la?

A pandemia. Aliás, a pandemia não está sequer a ser organizada de forma correta no Brasil. Isto é, quando não se tem um bom "administrador" [Jair Bolsonaro]…

Mas não havia um imbróglio qualquer com a distribuição?

Hoje não. "Marighella" não estreia por causa da pandemia. Era para ser lançado antes, mas houve essas tais questões burocráticas que o impediram de chegar aos cinemas... que sabemos bem quais são. Mas atualmente, é por conta da pandemia. [em setembro de 2019, a estreia em novembro foi cancelada pela produtora alegadamente por não ter conseguido cumprir "todos os trâmites" exigidos pela Agência Nacional de Cinema (Ancine); em janeiro, foi anunciada a nova data, 14 de maio, que também não se concretizou].

O TRAILER "MARIGHELLA"

Reparei que o filme arranca com quase minuto e meio de produtoras, empresas e outros apoios. Sabendo que o cinema brasileiro está hoje não em modo resistência, mas de sobrevivência perante constantes cortes, boicotes e outros obstáculos, será esta reunião de forças capaz de contrariar... não sei se será a melhor palavra, mas este tipo de censura?

Acho que há várias formas de fazer censura hoje em dia, sem dúvida que essa é uma delas. Mas acredito que o cinema brasileiro é muito forte, bem unido, e este filme mostra isso. Essas forças não ganham [risos] e o tempo e a História são implacáveis. As posições políticas são muito fortes hoje no Brasil e têm consequências, mas somos atores, fazemos Arte e a Arte é fazer política. Quer posição maior do que essa? Tenho amigos que tiveram que sair do país. Logicamente que é muito difícil acontecer o que aconteceu naquele período, mas tudo está posicionado para voltarmos a isso.

Mas não existe um medo por parte dos atores em posicionarem-se politicamente?

A minha posição é muito clara e ando com pessoas que tem posições muito claras. Talvez não sinta isso, porque acredito que todos nós devemos tomar uma posição, visto estarmos em cima de um muro, é o que nos resta. Você pode tomar essa posição e ficar em silêncio, mas o silêncio é ficar em cima do muro, o que automaticamente nos posiciona politicamente. Para qualquer que seja o lado. Mas nós somos atores e os atores servem para levantar questões, nem que seja fazer rir. Porque quando fazemos rir, também estamos a fazer política. Como dizia o meu grande amigo [Paulo Gustavo], "Rir é um ato de resistência".

"Wagner Moura não é só um grande ator"

Seu Jorge, Wagner Moura e Bruno Gagliasso na apresentação do filme no Festival de Berlim 1 15 de fevereiro de 2019

Como foi trabalhar com Wagner Moura enquanto realizador?

Virei-me para ele uma vez numa conferência de imprensa e disse-lhe "conseguiu ser melhor realizador do que ator” [risos]. E é verdade, a prova está aqui. Você viu o filme. Ele é um realizador sensível, que apesar de ser forte exibe uma grande delicadeza. Ele escuta-nos [aos atores] e nós escutamo-lo porque percebemos o que ele está a dizer. Tenho a certeza que quem vir o filme vai encontrar um grande realizador. Wagner Moura não é só um grande ator.

E na preparação, deu espaço para improvisações?

Antes da rodagem, tivemos uma preparação de dois meses e vivi em São Paulo por uns três meses e meio. Foi um processo bem intenso e profundo, muito por conta destas personagens, todo eles fortes e a minha não fugiu à regra. Fiz a escória da História. Acho que a minha personagem tem tudo o que é de mais odioso. E foi com a chegada da minha filha.. tenho uma frase no filme, “se eu mato preto, mato vermelho”, que teve muito impacto em mim. De certa forma, orientou-me para a sua construção. Tinha de procurar em mim, emprestamos nem que seja à personagem mais distante possível. Os atores precisam de emprestar algo. E, para mim, tirar isso foi muito difícil.

Apesar de também ser político, outro tema que o filme nos traz é o racismo, que ainda hoje persiste.

Por isso é que este filme é bem atual. E quando digo que é atual, não é só por causa deste momento político em que vivemos. É por conta de tudo, historicamente falando. E tem muita ação, ficamos agarrados. E ainda por cima é um filme longo [risos].

Mas uma das controvérsias do filme no Brasil foi a escolha de Seu Jorge como Marighella.

Sim. Por causa do tom da sua pele. Isso é uma ficção, não é uma realidade e o próprio Marighella declarava-se negro. Essa discussão é tão mesquinha em comparação à grandiosidade do filme.

A certa altura, Marighella quebra a quarta parede e vira-se para nós [espectadores], salientado que vai recorrer ao “terrorismo”. Ou seja, temos um homem com causas dignas a entrar por vias de causas indignas.

O Wagner retratou muito bem isso. Querem o Marighella? Ei-lo, se pediram vão ter. Não há endeusamentos, o filme mostra o que ele realmente é... e o espectador que tire as suas próprias conclusões.

O Brasil precisa hoje de um Marighella?

[Hesita] Sim. É óbvio, até porque ele foi patriota. Marighella amava o Brasil e o que sentimos mais falta hoje é de pessoas que amem o Brasil. Uma prova disso é o nosso Governo, que chama a quem está a proteger a própria vida [durante a pandemia] de “idiota”. Ele [Bolsonaro] acabou de dizer isso.

O que está a dizer é que faltam no Brasil pessoas que defendam o país?

Sim, fazem falta pessoas que não tenham medo de lutar pelo país. Quer dizer, nós temos, só que quem está a tomar conta do país parece não se importar com os brasileiros. Isso é triste. Toda a gente está a ver as reuniões da CPI [a Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão da COVID-19]. Eles estão a fugir das perguntas porque sabem que vão presos se responderem. Onde está o dinheiro das vacinas? Foi gasto noutras coisas, como em medicamentes cientificamente ineficazes para o combate da COVID-19. Recusaram sete vezes a vacina… sete vezes! Não sou eu que estou apenas a falar, está à vista de todos...

Joia Rara

Você é célebre em Portugal graças à sua participação em várias telenovelas, mas reparo que tem apostado cada vez mais no cinema. Em “Marighella” ou “Todas as Canções de Amor” e “Loop”. Hoje em dia, o cinema está atualmente mais capacitado de falar sobre o Brasil atual que a televisão?

Acredito que o cinema sempre falou. A telenovela teve um papel muito importante, tendo em conta a dimensão que tinha. Hoje, está mais dispersa, mas continua a ter a relevância no Brasil. Admito que atualmente tem menos, mas continua. A Arte, mesmo nos momentos difíceis, tem tendência em sobressair. Podem tentar apagá-la, mas Arte é História e com a História não há nada a fazer.