Há quem o apelide de “realizador japonês de nicho”, mas a verdade é que Ryûsuke Hamaguchi tem captado cada vez mais atenção no seu percurso.
Aluno de Kyoshi Kurosawa, o cineasta tornou-se um nome de luxo através do prémio garantido no Festival de Locarno (em 2015) com o seu épico dramático “Happy Hour: Hora Feliz” (com uns impressionantes 317 minutos de duração).
Seguiu-se o romance com duplos – “Asako I &II” (2018) – que competiu no Festival de Cannes, no ano em que o conterrâneo Hirokazu Kore-eda e “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões” conquistaram a tão invejada Palma de Ouro.
Os dois filmes tiveram distribuição portuguesa, conquistando novos adeptos para o seu cinema delicado e plenamente ciente das convenções do quotidiano nipónico.
O SAPO Mag Mag conversou com Ryûsuke Hamaguchi a propósito de “The Wheel of Fortune of Fantasy” (também já comprado para o nosso país pela distribuidora Leopardo Filmes), uma das delícias e Grande Prémio de Júri na última edição (virtual) do Festival de Berlim, onde somos levados para um conjunto de três histórias sem aparente ligação: uma mulher descobre que a sua amiga tem um caso romântico o seu ex; outra aceita ser isco numa armadilha sexual para comprometer um consagrado romancista; e a última, num futuro alternativo em que um vírus informático colocou o mundo de “pernas para o ar”, uma trintona acredita ter reencontrado um amor de liceu.
Tratam-se de relatos de um mundo que reprime desejos, afetos e vontades em relação ao próximo, uma verdadeira “Roda da Fortuna” … cuja única solução é girar.
Segundo as suas notas de intenções no dossier de imprensa, este filme é o resultado de três das sete curtas histórias que escreveu. Iremos ver as restantes num futuro próximo?
Sim, planeamos fazer os outros quatro episódios, não num futuro imediato. Mas já estou a ponderar filmar os episódios 4 e 5 em 2022.
Apesar de serem três segmentos narrativamente independentes, julgo que a sua ligação está nas “escolhas”. Ou seja, estas personagens seguem em direção a uma crucial mudança.
Para dizer a verdade, encontro-me mais interessado naquilo que os espectadores interpretam do que as minhas próprias definições. Porque um filme é sempre uma experiência distinta para quem o vê. E ao ouvir a sua interpretação, de que as personagens vivem o resultado das suas escolhas, faz-me querer saber mais daquilo que viu e de outras pessoas. Contudo, não descartando essa sua interpretação, estas histórias são povoadas por personagens que, de uma maneira ou doutra, lhe foram permitidas chances de alterar as suas vidas através de pequenos gestos ou fatores. E estas personagens procuraram interromper esse fluído, a que chamamos "destino", para, de certa forma, descobrirem um outro lado delas próprias.
É sabido que o terceiro capítulo foi rodado no verão de 2020, durante a pandemia. Curiosamente, ele decorre numa distopia próxima onde um vírus informático alterou para sempre a sociedade e as relações afetivas. Esta alusão pandémica leva-me a perguntar sobre os desafios que encontrou ao filmar com estas restrições.
Em termos de produção, principalmente neste terceiro capítulo, pretendia não filmar pessoas que usassem máscaras, sendo que a solução arranjada foi criar um mundo paralelo. Um mundo esse que fosse tão próximo ao nosso, com algumas diferenças. Atualmente já nos estamos a habituar ao cenário. Presenciamos cada vez mais, principalmente em séries televisivas, atores a utilizar a máscara, o que tem sido uma abordagem necessária porque captar a realidade é uma das funções da câmara. É o correto, mas ainda nos restringe. E quanto às outras dificuldades, não é preciso ir muito longe.
“The Wheel of Fortune and Fantasy” foi o seu reencontro com alguns atores que trabalharam consigo na sua primeira longa-metragem ["Passion", 2008] - principalmente as duas atrizes do terceiro segmento [Fusako Urabe e Aoba Kawai]. Curiosamente, ele intitula-se “Once Again” [Mais uma vez].
Sempre tive o desejo de reunir o elenco do meu “Passion” e já houve várias oportunidades para o fazer. Contudo, pretendia que essa reunião fosse substancial e não uma pequena cordialidade, que me garantisse passar mais tempo com eles e trabalhar intensamente nos projetos. A questão dos atores de “Passion”, daquilo que se extrai da minha experiência com eles, é que para além de serem atores maravilhosos, são maravilhas enquanto pessoas. Pretendo trabalhar mais vezes com eles num futuro próximo. Espero que seja uma relação duradoura. A minha maneira de trabalhar e pessoal forma de filmar mudaram bastante desde “Passion”, por isso era importante para mim, visto que desejava trabalhar novamente com eles, reafirmar esta minha mudança. É a minha afirmação perante eles. Este é o meu novo “eu” enquanto realizador, o que não invalida, aliás reforça, o meu encanto nesta reunião. E ao fazer isto, tornaria esta relação ainda mais profunda.
Como encara a indústria nipónica na atualidade? Pergunto isto visto que, como o definiu, a sua obra anterior ["Asako I & II"] é um “filme comercial”.
Antes de responder a isso, deixe-me só clarificar as nuances. Aquilo que nós [japoneses] chamamos de “shōgyō eiga”, que literalmente traduzido é “cinema comercial”, não possui a mesma ligação com o “cinema comercial” na disposição ocidental, aquele que facilmente associamos ao cinema-pipoca, "blockbusters" ou os filmes recordistas de bilheteira. Mas falemos da indústria, do negócio, porque ele é necessário para que possamos desenvolver a técnica e o equipamento que nos permitem fazer melhores e melhores filmes. Acerca disso, não tenho problemas com o dito “cinema comercial”.
Mas se eu pudesse falar sobre os problemas que a indústria japonesa enfrenta hoje em dia, abordaria a falta de dinheiro, como também a forma como este é distribuído... obviamente, da maneira errada. E se continuasse com os problemas, acrescentaria ainda que existe a questão do tempo. Pouco tempo no processo de produção. Recordo uma conversa com Jacques Doillon, um cineasta francês que aprecio bastante, que confessava as dificuldades no seu último filme, nomeadamente o pouco tempo que dispôs para o filmar. Curioso como sou, questionei-o acerca desse mesmo tempo de rodagem. A resposta foram três meses, o que me deixou surpreendido porque no Japão não dispomos desse tempo. Aqui é particularmente difícil obter um mês de rodagem, e quando conseguimos é quase um luxo. Obviamente que, com isto, não estou a referir que quanto mais tempo obtemos para a rodagem, melhor será o filme. Contudo, são as adversidades que angariamos na agenda que nos dificultam ainda mais conceber um filme....
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