Resistir, ignorar ou ceder? Hollywood e a indústria cinematográfica, há muito um refúgio para idealistas progressistas, estão preparadas para escolhas difíceis na era de Donald Trump, o presidente dos EUA.

Esta semana, as mudanças radicais que se desenrolaram nos EUA e a nível internacional pairaram sobre todas as discussões no Festival de Cinema de Berlim, e levaram muitos filmes exibidos no país a serem vistos através de novas lentes políticas.

"Mickey 17", que chega aos cinemas portugueses a 6 de março, o novo filme do aclamado cineasta sul-coreano Bong Joon-ho, assumiu um tom diferente à luz dos acontecimentos atuais, com o multimilionário amante do espaço no centro da sátira a parecer uma mistura de Trump e Elon Musk.

"Dreams", filme do realizador mexicano Michel Franco e protagonizado por Jessica Chastain, abordou a imigração e a história de um bailarino mexicano sem documentos que cruza a fronteira para os EUA Unidos para estar com a sua amante rica.

A história é 'incrivelmente política, (em parte) por causa do que está a acontecer agora... não apenas nos EUA, em todo o mundo", disse a atriz aos jornalistas.

Jessica Chastain em Berlim

A questão para os cineastas, estúdios e atores é se resistem abertamente ao nacionalismo “América Primeiro” de Trump, seja através do seu trabalho no ecrã ou de declarações públicas.

'Não tenho nenhum problema em nomear Donald Trump e Elon Musk e todo o Partido Republicano e condená-los pelo que está agora a acontecer”, disse à agência France-Presse (AFP) o cineasta independente norte-americano Todd Haynes, que preside ao júri de Berlim.

“Encontramo-nos agora num momento terrível, que exigirá toda a energia para resistir e voltar a um sistema que, por mais falhas que tenha, é algo que consideramos natural como americanos”, acrescentou.

Escapismo

Outros foram mais recatados nas suas posições.

Quando questionado sobre a ascensão dos partidos políticos de extrema-direita, a superestrela Timothée Chalamet, em Berlim para a estreia alemã de "A Complete Unknown", o seu 'biopic' de Bob Dylan nomeado para os Óscares, não mencionou o nome de Trump, mas alertou sobre figuras 'salvadoras' ou 'tipo culto', referindo mesmo o caso de "Dune: Duna", onde participa.

Um moderador interveio para transferir o debate para o filme e longe das "políticas pessoais".

O britânico Robert Pattinson evitou uma pergunta sobre Trump, enquanto Bong negou ter-se inspirado no magnata nova-iorquino para a seu personagem política multimilionária, dizendo que estava a pensar em ditadores do passado.

Bong Joon-ho e Robert Pattinson em Berlim

Questionado se os realizadores deveriam abordar temas mais políticos, o cineasta norte-americano nomeado para os Óscares Richard Linklater disse que 'os filmes, em particular, foram sempre escapismo'.

O seu mais recente, "Blue Moon", decorre em 1943 e inclui uma discussão no ecrã sobre como o público deseja distrair-se dos horrores da Segunda Guerra Mundial.

O britânico Benedict Cumberbatch disse que o cinema refletia as 'preocupações coletivas' de um momento específico da história, mas que os artistas precisavam ter cuidado para evitar declarações desajeitadas.

“Enquanto artista, acho que se está a falhar se se tentar andar por aí a converter ou a ser didático”, disse aos jornalistas.

Cedência

"The Apprentice - A História de Trump"

Resta saber até que ponto Trump pressionará os estúdios de Hollywood para se alinharem por exemplo com a sua agenda contra a imigração, os direitos transgénero ou os programas de diversidade racial e de género.

No início deste mês, substituiu a diretoria do Kennedy Center, uma importante instituição cultural de Washington, e partilhou online que daria início a uma “ERA DE OURO das Artes e Cultura Americanas”.

Um dos seus objetivos era garantir que não houvesse mais “PROPAGANDA ANTI-AMERICANA”.

Na semana passada, o grande estúdio Disney – que Trump ridicularizou como 'woke' no passado – seguiu o exemplo de outras grandes empresas dos EUA ao abandonar as metas de diversidade como um “fator de desempenho”.

Nomeado para dois Óscares, "The Apprentice: A História de Trump", um retrato nada lisonjeiro do magnata nos seus primeiros anos como investidor imobiliário, teve dificuldades para encontrar distribuição nos EUA no ano passado e ainda não tem um acordo de streaming.

Outras questões para Hollywood incluem a possibilidade de continuar a filmar no estrangeiro - muitas produções são rodadas no México por razões de custo - numa altura em que Trump pressiona as empresas norte-americanas a basearem as suas atividades no país.

"Infelizmente, já estamos a ver, não necessariamente em Hollywood, mas em muitos outros lugares que lidam com um enorme poder corporativo, uma cedência a esta nova administração que é simplesmente chocante", disse Haynes à AFP.

“Quando as pessoas dizem ‘Ah, eles estão apenas a trabalhar para o longo prazo’, é quando nos vemos contaminados pela cultura em que se está e perde-se a sua própria capacidade de se defender”, continuou.

O palmarés do Festival de Berlim será anunciado no sábado.