A simbologia do banho como purificação do corpo e de alma, terrenos tão ditos e característicos da teologia cristã, são recorrências em “O Último Banho”, a primeira longa-metragem de David Bonneville (que se destacou nos universos das curtas-metragens, principalmente com “Cigano”).
Um filme sobre tentação, essa serpente que rasteja ao sabor da tragédia. Uma noviça, Josefina (Anabela Moreira), preparada para os seus votos de castidade, retorna ao local onde jurou não mais voltar, a herdade do seu pai que acabara de falecer. Para além dos processos envolventes à herança, Josefina toma a responsabilidade de cuidar do seu sobrinho (Martim Canavarro), que havia sido “abandonado” pela mãe (Margarida Moreira).
Esta relação forçada, mas envolvente, suscitará dilemas e dúvidas na fé prosseguida pela protagonista, gradualmente incitada pelos constantes banhos. “O Último Banho” remexe em temáticas complexas e de alusão bíblica, colocando as suas personagens em destinos cruzados e de turbilhões emocionais.
Para o realizador este filme foi o enorme desafio não só pela sensibilidade do tema e desconstrução do teor religioso, muito dele ainda conservado no Portugal profundo, como também pela passagem para o formato de longa-metragem. “O grande passo começa pelo argumento. (…) O processo é similar, a diferença está é na duração” disse Bonneville ao SAPO Mag “A economia narrativa é proporcional. Aquilo que tenho de suprimir numa curta, tenho de suprimir numa longa”.
O realizador falou-nos precisamente sobre esse processo de criação, referindo um argumento que foi sendo reduzido, e com isso dando às suas personagens uma aura de mistério e de sugestão. Segundo o próprio, tal tratamento aufere possibilidade ao espectador refletir por si próprio. “Sempre quis dar espaço ao espectador para pensar em todos os meus filmes. Para imaginar, sonhar ou até projetar nesta narrativa as suas próprias histórias e vivências. (…) Não estou a fazer televisão, a ‘espetar’ informação toda de rajada numa história.” Após a sua declaração, e questionado se se veria a trabalhar no meio televisivo, Bonneville respondeu: “Vejo-me, aliás ver-me-ia, porque hoje produzem-se séries bastantes cinematográficas, que seguem uma lógica de autor.”
Voltando ao filme propriamente dito, algo que o realizador deu a entender e que o espectador também entenderá, é que nada disto seria possível sem Anabela Moreira. A atriz, conhecida pelo grande público pela longa e metódica colaboração com o cineasta João Canijo (“Sangue do Meu Sangue”, “Mal Nascida”, “Noite Escura”), confessou ao SAPO Mag ter inicialmente hesitações quanto a este papel. “Há uma altura da tua vida em que acreditas que consegues fazer tudo, mas depois, quanto mais me vou conhecendo mais me apercebo que existem papéis que não foram feitos para mim.” Apesar das hesitações, Anabela Moreira aceitou encarnar a personagem, marcando a tal esperada cooperação. “Conheço o David [Bonneville] há alguns anos. Até porque ele é fã da obra de João Canijo. (…) Fomos mantendo contacto sobre a promessa de um projeto que condissesse connosco”.
Para provar a sua capacidade para a personagem de Josefina, a atriz iniciou mais um processo criativo, que consistiu em viver alguns dias entre as Irmãs Dominicanas num convento em Monsanto. “Acompanhei uma irmã que ainda não tinha concretizado os votos, uma noviça, que teve a amabilidade de partilhar os seus dias comigo. Durante esses dias cumpria os mesmos rituais que elas, com isto já me encarando como Josefina, e foi então que descobri um interesse nesta procura, o de amar ou casar por este amor universal, esta perfeição de amor que é o amor por Deus.”
Sobre este método, aliás sobre os processos e estágios que a atriz se submete, principalmente no seu trabalho com Canijo (como por exemplo o trabalho de terreno numa casa de alterne antes da rodagem de “Noite Escura”), a atriz realçou o seguinte. “Todos os atores sonham e desejam isso, não é um método meu. Só que na maioria das vezes não nos dão essa oportunidade, mas o ator é sedento disso. O Canijo fornece isso caso queiramos, mas há quem ache contraproducente. Por vezes estar afastado dessa realidade pode ser útil.”
Anabela Moreira divulgou que a sua estadia no convento partiu dela, com aprovação do realizador e da produtora C.R.I.M., devido a algumas incongruências do argumento, principalmente nas razões que levaram Josefina a dedicar-se corpo-e-alma a Deus. Porém, é verdade que as personagens de “O Último Banho” são movidas pelo constante desejo, muitos delas sem uma revelada razão, e isso é graças ao argumento, que foi descartando informação sobre o passado dessas personagens, de forma, como o próprio realizador já havia mencionado, a dar espaço ao espectador para contribuir com a sua própria perceção. “Na Arte, tão importante como a obra é o espectador dessa obra. Será que a obra existe sem o espectador? A interpretação do espectador faz parte dessa obra, e portanto cada um tem de a construir de acordo com a sua capacidade de interpretação.” diz a atriz Anabela Moreira.
Das personagens mais “sacrificadas” por essa priorização da sugestão está a de Margarida Moreira – Ângela -, a mãe que deixou para trás o seu filho em busca de algo que o espectador tentará desvendar… e julgar. “Josefina vai procurar Deus, uma vida religiosa, enquanto a minha Ângela faz o caminho oposto, aparentemente. Sob uma primeira camada, pode parecer que a minha personagem se move por via da futilidade, porém ela procurou a fisicalidade, ao invés de espiritualidade da sua irmã.” Anabela e Margarida conhecem, e mantêm em segredo, os motivos que levaram estas duas irmãs a seguir os seus trilhos de costas voltadas. Elas filmaram as ditas cenas, que não chegaram à montagem final, mas cumpriram a sua função de guia para fortalecer estas duas figuras martirológicas, cada uma com a sua cruz específica.
A completar o triângulo dramático de “O Último Banho” está o filho/sobrinho Alexandre, interpretado por Martim Canavarro, modelo que se tornou a cara da Calvin Klein aos 16 anos e que se estreia no grande ecrã ao lado de atores experientes, mas que, como o próprio garantiu ao SAPO Mag, não se deixou intimidar: “Fez-me sentir como um desafio mais gratificante, porque senti que estava a trabalhar com os melhores e eu mesmo não sendo o melhor, tinha que tentar sê-lo. Isso fez-me crescer como pessoa e como ator, porque tinha que conseguir acompanhar o ritmo”.
Scalabitano de gema, Martim tem o sonho de jogar na equipa principal do Sporting, mas devido à morte do seu avô (“um dos meus ídolos, olhava para ele como um exemplo”) adiou, por enquanto, tais ambições. Coincidentemente, no filme, a sua personagem também lida com a perda do avô, uma sequência difícil para o nosso jovem, funcionando como uma fonte de inspiração e de carga dramática para o seu desempenho. Quanto ao futuro na representação, o agora ator deixou bem claro que tal é incerto. “Estando numa campanha da Calvin Klein, isso leva-me a uma carreira de modelo, com a qual também simpatizo muito.”
Trailer de "O Último Banho":
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