Um dos maiores festivais de cinema europeus dedicados ao documentário arranca esta quinta-feira (17) e vai até dia 27. No total, serão exibidos mais de 300 filmes no DocLisboa.

O SAPO Mag conversou com um dos programadores, Miguel Ribeiro, que ressaltou a importância da política no festival – com um olhar especial sobre um Brasil a flertar com o fascismo.

Para além das obras do país, a conversa passou por alguns dos projetos do festival – como alguns trabalhos portugueses (“Technoboss”, “Prazer, Camaradas”), os filmes da secção “Cinema de Urgência” e a retrospetiva dedicada a Jocelyne Saab, que também passa por um filme em restauração pela Cinemateca nunca antes visionado.

“NEM TODO O MUNDO É BURGUÊS!”

O festival sempre se assumiu como um evento politizado e na primeira questão da conversa sugere-se que, nos últimos anos, têm havido uma espécie de “migração” de agendas que antes eram iminentemente de classe e agora envolvem outros temas.

“Eu não falaria em migração”, diz Miguel Ribeiro.

“Sugeriria antes uma espécie de conscientização de que o discurso de classe hoje não pode vir sem outras questões que falam da organização da humanidade – com tópicos como género, raça, minorias. No caso do festival, o que pretendemos é imaginar novas formas de organização, que passam pela anulação de certos lugares de poder. Pensamos em que vozes podem surgir e tomar o palco para discutir o mundo”, salienta.

Miguel Ribeiro

Com o passar das décadas aquilo que era óbvio – a luta entre burguesia e proletariado – ganhou contornos muito mais disformes e nebulosos. Sugere-se ao programador que hoje em dia todo o mundo tem algo de burguês…

“Bom, nem todo o mundo! [risos]. E é importante não esquecer isso! [risos]. De qualquer forma, a nossa proposta é pensar noutros sistemas; não estamos a criar um novo, mas procuramos filmes que estejam longe da representação dos sistemas de poder tradicionais”, destaca.

A MORTE DO ARTISTA

O cinema de ficção vive tempos difíceis, sucumbindo largamente à opressão pelo politicamente correto e génios como Pedro Almodóvar e Woody Allen – que há dias vaticinou “a morte do artista”, têm lamentado as limitações a que são submetidos. Existe esse problema no documentário?

“A liberdade é o ponto de partida para o cinema. Quando pensamos no festival, imaginamos documentários como uma construção cinematográfica sobre o mundo, não apenas um reflexo da realidade. Interessa-nos um posicionamento claro, mas não um julgamento – pois esse vai construir um novo sistema. Queremos pensar e refletir a liberdade e não estimular novos gestos de opressão”, diz Miguel Ribeiro.

CINEMA DE URGÊNCIA

Uma das secções do Doclisboa chama-se Cinema de Urgência, menos preocupada com experimentalismos estilísticos e apresentando filmes mais diretos sobre a realidade.

“É curiosa essa questão do quotidiano”, reflete o programador.

“Quando a secção foi criada, tratava-se de identificar que imagens estavam a ser geradas pelo mundo fora no exercício da cidadania ativa, que imagens as ‘pessoas comuns’ andavam a produzir, de que forma se posicionavam com as suas câmaras e telemóveis. Hoje estamos tão habituados a isso que estas deixaram de ter um caráter de exceção e este ano temos duas produções mais tradicionais”, acrescenta.

CINEMA DE URGÊNCIA 1: EXPULSANDO PESSOAS DAS SUAS CASAS

O Que Vai Acontecer Aqui?

Por falar em “luta de classes”, uma bem viva decorre no espaço da capital portuguesa, que vem das desigualdades sociais provocadas pela expansão do capitalismo financeiro sobre o mundo da habitação. Sem ser grande notícias nos “media”, a verdade é que muita gente foi expulsa das suas casas em Lisboa.

Esse é o tema do filme “O Que Vai Acontecer Aqui?”, obra do coletivo Left Hand Rotation.

Segundo Miguel Ribeiro, “o filme constrói de uma forma muito clara o processo de especulação imobiliária que ocorreu na cidade e como isso levou a que, sem um posicionamento político claro, tantas pessoas fossem expulsas das suas próprias casas. A obra também mostra os movimentos de resistência”.

O tema até é abordado pelos "media", acrescenta, "mas de uma forma muito pouco implicada. Esse é o tema que vamos discutir nos debates do Cinema de Urgência, ou seja, a neutralidade do jornalismo – que nunca pode ser ‘neutralidade’, pois esta também é uma forma de se posicionar”.

Technoboss

Fora da secção, dois filmes portugueses merecem destaque pela sólida carreira internacional que tem feito depois da estreia no Festival de Locarno: “Technoboss”, de João Nicolau, é mesmo o eleito para encerrar o festival.

“É um filme muito especial no contexto de produção do cinema português. É ao mesmo tempo divertidíssimo e altamente introspetivo – e traz uma ideia de libertação na medida em que mostra o que cinema pode trazer de bom”, descreve o programador.

Já “Prazer, Camaradas” passa-se nos tempos do PREC e é o novo trabalho de José Filipe Costa, que tinha trabalhado temática semelhante em “Linha Vermelha”, de 2011.

“O filme é importante porque relata não só as lutas políticas como as de libertação sexual, que é um tema não muito discutido. É interessante ver através dos olhos de pessoas que viveram aquela época e a forma como os acontecimentos influenciaram as suas vidas”, salienta Miguel Ribeiro.

CINEMA DE URGÊNCIA 2: A REPÚBLICA PROTO-FASCISTA BRASILEIRA E O COLAPSO DOS “MEDIA”

A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha

“A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”, de Pablo López Guelli, é o outro projeto da secção e representativo de uma preocupação do festival, que há dias divulgou um comunicado de apoio ao cinema do Brasil após o anúncio do corte, pelo atual governo, nas verbas para os cineastas apresentarem os seus filmes no exterior.

O filme narra a atuação dos meios de comunicação tradicionais, com especial ênfase no canal televisivo Rede Globo, durante os processos de demonização do Partido dos Trabalhadores (PT) e da destituição da ex-presidente Dilma Rousseff – mostrando como isso abriu a porta para o populismo proto-fascista que agora a ameaça a liberdade de expressão no país.

Para além dos cortes do Ancine, agência brasileira de apoio ao cinema, que tentam parar uma das produções cinematográficas mais diversificadas do mundo, Miguel Ribeiro cita casos recentes de perseguição – como o de um festival de cinema uruguaio pressionado para não exibir o filme “Chico – Artista Brasileiro” – obra que retrata um dos maiores ícones da cultura brasileira e um histórico personagem da luta contra a ditadura.

“Essa foi uma das razões que nos levou a exibir o filme”, observa.

Um dos mestres do cinema brasileiro é Eduardo Coutinho, que terá exibido o seu clássico “Cabra Marcado para Morrer”, o seu epitáfio (“Últimas Conversas”) e “Banquete Coutinho” – obra onde ele sai de trás das câmaras para discutir a sua obra com o cineasta Jostafá Veloso.

Outros projetos vindos do país são “Um Filme de Verão”, “Retratos de uma Identificação”, “Chão” e “Dorival Caymmi – um Homem de Afetos”.

O FILME MISTERIOSO DE JOCELYNE SAAB

Jocelyne Saab

A beneficiar de uma vasta retrospetiva, a cineasta libanesa, falecida em janeiro de 2019, terá um dos seus filmes mais raros em estreia mundial no Doclisboa.

Conforme conta Miguel Ribeiro, a obra surge no contexto do seu trabalho para a televisão francesa: quando se deslocou ao Médio Oriente e apareceu com um filme chamado “As Mulheres Palestinianas”, foi imediatamente informada de que estava proibida de voltar a fazê-los.

Assim, essa curta-metragem, que significou uma rutura na carreira de Saab e fez com que se voltasse para o cinema e para a sua região de origem, jamais foi visionada. A aguardar o trabalho de restauração pela Cinemateca Portuguesa, o programador do DocLisboa diz que “estamos muito entusiasmados para assistir ao filme e saber o que havia, afinal, de tão impactante”.

A partir daí, Jocelyne Saab produziu uma grande diversidade de trabalhos por todo o mundo árabe, destacando-se uma longa-metragem e duas curtas sobre Muammar Khadafi: a cineasta teve acesso ao controverso líder da Líbia apenas quatro anos depois do golpe que o levou ao poder, refletindo nos filmes todas as esperanças nele depositadas a partir de um momento político muito específico.