Em 2013, uma comédia típica francesa de costumes e de choques culturais tornou-se um dos grandes êxitos do "box-office" português: "A Gaiola Dourada", do lusodescendente Ruben Alves e com um elenco português.

Ainda que esse fenómeno não se vá repetir num ano como este 2020, "Miss"; a sua segunda longa-metragem, que estreia hoje (26) preserva muitos dos mesmos códigos que conquistaram multidões: a história de um rapaz que sonha vencer o concurso da Miss França e para isso se transveste como uma mulher, assumindo uma nova identidade.

Ruben Alves toma partido de Alexandre Wetter, ator e modelo andrógeno, neste “feel good movie” (o realizador não o esconde na entrevista ao SAPO Mag) que chega até nós para contribuir para um debate sobre temáticas identitárias e de transgressões ao convencionalismo de género.

Como surgiu este projeto?
A ideia de “Miss” surgiu do meu encontro com o Alex [Alexandre Wetter]. Já tinha em mente um filme que falasse sobre a identidade de género, sendo uma causa que me toca imenso, mas quando encontrei o Alex é que me deparei com uma personagem iluminada, livre que assume completamente tudo. É um rapaz que demonstra o seu lado feminino e aqui, com esse mesmo lado, cria e recria a sua performance. Encontrei-o no Instagram a desfilar para a Alta-Costura, e fiquei automaticamente surpreendido e até mesmo baralhado. O rapaz não quer ser mulher, ele apenas se quer exprimir, é tão moderno e próprio da nossa época. Simplesmente é livre!

A particularidade é que temos um rapaz que quer participar no concurso Miss França, apenas isso. Não deseja transformar-se em mulher nem nada parecido, o que afasta “Miss” da temática da transsexualidade mas aproxima-o das questões de identidade ao nível do género.
Exatamente. Isso pode ser perturbador para muita gente. Mas ele é um rapaz! É o sonho dele que simplesmente está a viver. “Miss” é um filme sobre sonhos e como concretizá-los, por mais “malucos” que sejam. Mas para quê? Para que se conheça o percurso interior e introspetivo. A lição aqui é a seguinte: ama-te tu antes que as pessoas te amam. É aceitar e amar essa diferença. Porque a diferença é a riqueza. E é isso que faz um povo, é isso que se faz a Humanidade. Porque não somos todos iguais.

Deixe-me dizer que o que mais me interessou foi a utilização do universo do pugilismo, que é o tema da superação e do “underdog” no cinema. E que o utiliza como base estrutural para todo o percurso do Alex.
Tentei fazer deste filme uma espécie de “Rocky”! Achava interessante como um amigo de infância “volta” e como ele traz uma representação de virilidade ligado ao mundo do boxe e como isso se irá relacionar/trabalhar com a feminilidade trabalhada pelo protagonista. É um paralelo mais do que interessante, até porque sou fascinado em desconstruir clichés. Como tal, escolhi a Miss França porque é um concurso ditado por regras, “super-clássico”, em contraste com uma personagem que não anseia ficar reduzido em caixas. Para conseguir vencer o concurso, ela(e) tem que se deixar subjugar pelas regras.

VEJA O TRAILER DE MISS.

Visto que falou do Alex ser uma figura, em si, livre, e sendo um pessoa andrógena, como o trabalhou ou direcionou-o para se enquadrar na sua idealização?
Na verdade, bastou-me encontrá-la em Alexandre Wetter, porque ele próprio tem essas características, essa experiência e iluminação. Acredito que tive que transladar essa dita iluminação para a personagem, mas desconfio que nem um terço daquilo que o Alex possui. Recordo que, quando o conheci, contava-me histórias da sua própria experiência de vida, do "bullying" que sofria enquanto criança. E o que era invulgar é que me contava tudo isto com um sorriso nos lábios. O importante era que ele percebesse o percurso da sua própria personagem, de onde veio, o que vivenciou e para onde vai. Um trabalho deveras introspetivo. Até digo mais, foi muito mais difícil para o Alex trabalhar o seu lado mais masculino, da maneira como se vestir, andar, etc., aquele que evidenciamos no início do filme, do que a sua parte mais feminina. Isto aconteceu devido à experiência vivida pelo próprio Alex.

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Como se deparou com este universo das Misses como o objetivo de Alex? Como estudou e reproduziu esse sistema, essa instituição?
A ideia surgiu num almoço com o Alex, questionando o que será que pode levar alguém ao máximo da sua feminilidade e seja acessível a todos os públicos. Costumo fazer filmes a pensar em causas, até mesmo nas mais arriscadas. Neste caso a questão de género, debrucei-me numa instituição com que todos estão familiarizados. Então, eu e a minha argumentista guionista [Elodie Namer] batemos à porta, eles receberam-nos cordialmente e durante um ano mostraram-me a estrutura e processo desse universo de Misses. Gostei do lado de uma instituição tão clássica e normativa permitir a entrada de uma personagem como esta. Lembro-me de ter perguntando a uma das responsáveis que nos acompanhou neste estudo se seria possível, tendo em conta as suas atuais características, regulamentos e restrições, acontecer algo como este filme. A resposta foi que poderia ser possível. Por isso mesmo era importante para mim usar a instituição e desconstruí-la.

Nessa questão de desconstruir, há uma personagem em “Miss”, Amanda (Pascale Arbillot), que vai produzir o novo concurso e que se depara com um programa obsoleto, incapaz de cativar novas gerações. Acredita nisso?
Não, porque este concurso é a preservação do sonho trabalhado. Hoje em dia, tudo quer-se rápido, efémero ou instantâneo. Como a fama, surgida do nada, mas que desaparece de um momento para o outro. E as Misses, tal como diz, algo obsoleto, está a regressar. A ser novamente um desejo, uma fantasia e até mesmo um objetivo. Agora, a questão de modernização que faço no filme… bem, eles que desenrasquem, lancei a sugestão [risos]. Há dois anos, em França, houve uma polémica por causa dessa mesma modernização, em que se ponderou aceitar candidatas transexuais. É uma abertura que leva a uma mudança de regras, requerimentos e procedimentos. Alteraria tudo.

Em "Miss", sinto que o(a) Alex tem um tratamento privilegiado na competição, até porque a nível narrativo, você lhe dá um passado trágico, sendo órfão e acolhido numa família de marginalizados sociais.
Acabei por dar os dois. A infância feliz com os pais, pelo que está no filme possibilita ao Alex acreditar no sonho, porque eles próprios o induziram a lutar por aquilo que queria. Ser o que acreditava ser. Tudo era possível. E a questão da família adotiva era tornar esta sua luta igual, porque perante as adversidades o protagonista teria que ter um suporte, um equilíbrio que o mantivesse firme para continuar o seu sonho.

Sinceramente, acredita que, nos tempos que decorrem, ainda vale a pena “lutar por sonhos”?
Acho que sim, há que lutar por isso. E… por muito estranho que pareça, não tenho muitos sonhos. Não sou uma pessoa sonhadora, nem coisa que o valha.

Ruben Alves com as Misses e Alexandre Wetter

Como sente estrear um novo filme em Portugal, tendo em conta que "A Gaiola Dourada" foi um tremendo êxito... equivocadamente vendido como uma "obra portuguesa"? [risos]
Sim, é verdade. [risos] "Ai, foi o filme português que mais gostei!" [sarcasmo] Sim, o filme foi vendido como tal, e não só aqui, mas em todo o lado. Bem, esta minha obra é puramente francesa, abriu a Festa do Cinema Francês, o que me deu um sabor particular porque são dois países [Portugal, França] que me construíram. Não sei ao certo como o público português irá reagir. O que posso dizer é que em França correu bem. Muitos dirigiram-se a mim com comparações com “A Gaiola Dourada”.

E o que diziam?
Que não tem nada a ver, e ao mesmo tempo tem tudo a ver. Estão lá os meus elementos e preocupações, a dinâmica da identidade, da família, isso que me caracteriza, está lá.

Suponhamos que “A Gaiola Dourada”, que é de 2013 e foi a sua primeira longa-metragem, fosse feita hoje. Mudaria alguma coisa ou faria completamente distinto? Falo de elenco, tom ou outras questões.
Mais do que tudo, era importante fazer um filme “feel good” para descomplexar toda essa questão dos emigrantes, e como os portugueses olham para os seus imigrantes. Era importante falar disso, nem nunca troçar ou denegrir os valores da alma portuguesa. Sim, faria igual, no tom, em tudo. As únicas mudanças seriam em meros pormenores. Como também era o meu primeiro filme.

E novos projetos?
Estou a escrever com um argumentista espanhol um projeto que quero filmar aqui, em Lisboa, e com atores portugueses. Será basicamente um filme europeu. Digo europeu, porque será uma coprodução entre Portugal, França e Espanha.