A HISTÓRIA: Uma comédia negra que satiriza, num formato mosaico, vários setores da sociedade francesa contemporânea, prestando também uma homenagem ao povo francês. Através de diferentes histórias, contadas em simultâneo, o terror resulta do misto entre a atualidade e a imprevisibilidade: um casal de reformados, assoberbado em dívidas, tenta ganhar um concurso de dança; um fraudulento ministro da Economia é suspeito de evasão fiscal; uma adolescente encontra um maníaco sexual; e um jovem advogado tenta subir na hierarquia social. Nestes contextos sociais e assombrados que se cruzam, as reviravoltas são tão inesperadas como aterrorizantes.

"Laranjas Sangrentas": nos cinemas desde 9 de junho.


Crítica: Roni Nunes

Os preços dos bilhetes de cinema andam pela hora da morte e tem que haver uma boa justificação para uma pessoa sair de casa gastar preciosos euros numa sessão. E, se a lógica for filmes improváveis, cínicos, cheios de humor negro e algumas iguarias “gore”, este vencedor do MOTELX de 2021 que estreia agora em sala merece uma espreitadela. Um ano antes, Cannes também o tinha selecionado para uma das suas “midnight sessions”.

“O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer. E, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. Esta citação de Gramsci a meio do filme introduz a sensacional entrada na segunda parte deste “Laranjas Sangrentas”, abandonando aquilo que era uma sátira impiedosa dos políticos (qualquer retrato com intenções de credibilidade do mundo político tem que ser cínico) e da sociedade francesa – apanhada a meio das tensões do politicamente correto (começa com o júri de um concurso de dança com argumentos para lá de incorretos) e de angústias diversas. Tudo retratado com a precisão de diálogos e de direção de elenco próprio de um homem do teatro – a base do cineasta Jean-Christophe Meurisse.

A segunda metade, para todos os efeitos, justifica o termo “terror”, juntando sadismo, justiça pelas próprias mãos e violência (quase) gratuita, tudo de acordo com as melhores tradições do “savage horror” americano dos 70s (a estrutura é semelhante a “Fim-de-Semana Alucinante”, de John Boorman), trazendo uma “final girl” dos filmes de “violação-e-vingança” e ainda arranjando tempo para um pacto suicida.

Para os devidos apreciadores de tais iguarias, deve-se dizer que de forma alguma contrariam a inteligência da primeira parte, especialmente quando todos estes descalabros são aplicados a um retrato de “franceses típicos”, já que pessoas reais inspiraram o argumento.

Assim, há o ministro das Finanças suspeito de evasão fiscal mostrado em todo o pragmatismo da canalhice (há pormenores deliciosos, como o “show off” construído para um programa de televisão), uma adolescente que quer perder a virgindade (Meurisse sugere uma interessante via de ligar o empoderamento com um tratamento naturalista da sexualidade feminina), um casal de velhotes endividado que tenta melancolicamente ganhar um concurso de dança para pagar “metade” das dívidas e o filho deles – um advogado ambicioso com ar algo patético.

O referido “monstro” é um personagem “out of the blue” – um sujeito que aparece primeiro como um anjo vingador inacreditável para depois se tornar num vilão com bastante menos requinte.

Enfim, há ofertas de laranjas suculentas o suficiente para uma ida à mercearia... perdão, sala de cinema.