A HISTÓRIA: Após um erro fatídico, um assassino enfrenta os seus empregadores e a si próprio numa perseguição internacional que ele insiste nada ter de pessoal.

"O Assassino": disponível na Netflix a partir de 10 de novembro.


Crítica: Francisco Quintas

Pelas palavras do crítico americano Chris Stuckmann, o realizador David Fincher é “a estrela dos seus próprios filmes”, projetos consecutivos longe de serem escolhidos ao acaso. Na hora de selecionar um guião para trabalhar, o cineasta de “Sete Pecados Mortais” (1995) e “Clube de Combate” (1999) reafirma as suas grandiosidades artísticas, assim como uma dose de coragem que, discutivelmente, faltam a muitos (jovens) criadores.

Fincher é um cínico de natureza, um pessimista incurável. Como tal, parta de uma premissa simples ou extraordinária, evidencia uma tendência em resumir comportamentos, jornadas heroicas e desfechos dramáticos à perversidade humana mais primitiva e coletiva.

O Mark Zuckerberg de “A Rede Social” (2010) não é um guru da tecnologia, mas, sim, um adolescente birrento que se quis vingar da ex-namorada, tornando-se no bilionário mais jovem do mundo. “Em Parte Incerta” (2014) é uma mentira brilhante sobre as projeções de casamento e género numa sociedade de entretenimento venenoso. Vale averiguar, desta vez, qual o niilismo que originou “O Assassino”.

Sobrevoava o receio de que Fincher, servindo-se da homónima banda desenhada do francês Alexis Nolent, ter-se-ia rendido ao fetiche cinematográfico por malfeitores e matadores, limitando-se a encenar um exercício mecânico de um profissional da matança em busca de vingança.

Antes de corroborar ou refutar tal hipótese, presumia-se que a excelência técnica de tantas outras obras estaria garantida. De facto, a colaboração com o diretor de fotografia Erik Messerschmidt e o diretor de som Ren Klyce volta a imprimir uma atmosfera tensa e maléfica, enquanto a música original de Trent Reznor e Atticus Ross apimenta aquele que já era um ritmo audiovisual altamente cativante e nefasto.

No que à história diz respeito, dependendo de quem comentar, “O Assassino” apresenta uma pureza narrativa ou uma estrutura pouco imaginativa. Limitada às expressões oculares profundas e calculistas de Michael Fassbender, um ator com uma serenidade desconcertante, a personagem mata muita gente e mantém-se em constante movimento. Eficiente e calada, resigna-se a uma narração de observações banais ou filosóficas, enquanto mastiga um hambúrguer do McDonalds’s e ouve The Smiths nos auriculares.

Na motivação e no enredo minimalistas, “O Assassino” tem semelhanças com filmes de ação populares como “John Wick” (2014). Contudo, o desenvolvimento pragmático e algo frio da personagem principal poderá alargar o fosso emocional entre esta e o espectador.

Podemos apontar consideráveis omissões de informação e uma contextualização apressada, mas não seria este um filme de David Fincher se não propusesse alguma subversão de género e expectativas. Afinal, sobre o que fala este assassino?

Ainda que nenhuma especulação venha a ser confirmada pelo autor, como é habitual, o filme tem sido descrito como, entre outras coisas, uma análise retorcida sobre a relação entre o indivíduo e o ofício que o consome. Este assassino profissional sem nome é “um de muitos”, um cidadão que desconstrói e contraria os rígidos métodos profissionais de que se convence a toda a hora, incapaz de contemplar uma reforma, devido a uma vida doméstica bacoca ou uma dependência pelo labor.

Tais comentários não seriam, de todo, longínquos das ideias de Fincher, um voraz pensador dos lodos e vícios do pós-capitalismo do século XXI, que terá composto uma antítese dos atuais filmes de ação.

Caso estas interpretações estejam redondamente erradas, “O Assassino”, de qualquer maneira, cumpre e eleva o rigor técnico do realizador e propõe um visionamento de cinema atípico. Se já estamos habituados a aceder à nossa conta da Netflix por muito menos, um filme de David Fincher jamais será tempo perdido.