A HISTÓRIA: Os episódios da vida dos habitantes de um pequeno bairro de lata: bebedeiras, sonhos, depressões, casos de adultério, a luta pela vida de todos os dias. Um rapaz conduz um elétrico imaginário, um outro, que procura comida nos caixotes de lixo dos restaurantes, sonha em encontrar o pai, uma rapariga faz flores artificiais para sustentar o avô alcoólico. O “chefe" informal do grupo é o velho Tamba, um velho artesão, capaz de tudo perceber e de tudo perdoar.

"Pouca Terra... Pouca Terra - Dodeskaden": reposição nos cinemas a 8 de outubro.


Crítica: Hugo Gomes

No final dos anos 1960, as produções de grande escala de um rigoroso e perfeccionista Akira Kurosawa converteram-se em registos obsoletos e dispendiosos, enquanto surgia um punhado de novos cineastas com a capacidade de fazer com menor custos e saciando a procura intensa de sexo e violência por parte de um novo tipo de espectadores. Com isso, o realizador virou-se para Hollywood, com resultados desastrosos e sem frutos que apenas lhe causaram danos à reputação.

Face a essa mudança radical, Kurosawa juntou-se a outros três cineastas da sua geração – Kon Ichikawa, Masaki Kobayashi e Keisuke Kinoshita –, formando o coletivo “O Clube dos Quatro Mosqueteiros”, como apoio para todos produzirem e conceberem as suas obras de livre vontade e sem dívidas criativas para com uma indústria que lhes colocava entraves.

O primeiro (e último) elemento a ser beneficiado desta cooperação foi o próprio Akira Kurosawa com aquela que seria a sua estreia a cores, algo há muito desejado pelo cineasta, com formação como pintor e cujos elaborados “storyboards” têm sido reconhecidos como pequenas grandes peças de arte. O projeto que concretizaria essa ambição foi “Dodeskaden”, que traduz literalmente uma onomatopeia dos comboios a vapor (“Pouca Terra”).

A adaptação de oito dos quinzes contos do livro “Uma Cidade sem Estações”, de Shûgoro Yamamoto, é uma narrativa entrelaçada e coletiva de um bairro de lata, onde o miserabilismo dos seus habitantes ostenta doses de trágico e de mirabolantemente comédia.

O “pouca terra” do título expõe uma imaginária ferrovia na qual um jovem autista convencido que é maquinista de um comboio nos leva, enquanto espectadores, por paragens insólitas de personagens caricatas e pontuadas pelas suas... "anomalias".

O regresso será também por via da boleia desta viagem invisível, mas até lá, seguimos as diferentes histórias que cruzam estas “barracas” ou a falta delas, desde as mais hilariantes, como a de um par de amigos que se emborcam em álcool e “acidentalmente” trocam de casa e mulheres, até aos destinos mais nefastos, como a criança-mendiga “morta de fome” a sucumbir aos devaneios do pai, que por vias da imaginação constrói a casa dos seus sonhos.

“Dodeskaden” representa um olhar passivo para esta miséria onde os destinos desafortunados destas personagens nunca adquirem um efeito de honra ou justiça. Akira Kurosawa perdia a sua crença nas altas virtudes da Humanidade, e injustamente, perante a sua estreia "colorida" (as cores berrantes e plastificadas trazem consigo um artificialismo onírico), foi acusado de perpetuar o embelezamento da dor de outrem, de capitalizar e vender como arte a miséria.

Este filme foi o seu grande "fracasso" artístico e comercial a que só o tempo daria dignidade: esta é uma corrente de contos de derrotados, impotentes e conformados com as suas ridículas existências. Não existe aqui as epifanias e legados conquistados de “Viver – Ikiru” ou do senso de dignidade e de justiça dos seus ensaios feudais “Os Sete Samurais” ou “Yojimbo”, apenas uma passagem lateral por tudo isso.

Depois deste filme, Kurosawa tornou-se um cineasta derrotado, mas as suas "derrotas" traduzir-se-iam em projetos ainda mais gloriosos...