Vem e Vê
“E quando ele abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal dizer: Vem e vê. E olhei, e contemplei um cavalo amarelo: e o nome dele que estava em cima dele era a Morte, e o Inferno seguia com ele. E foi-lhes dado poder sobre a quarta parte da terra, para matar à espada e com fome, e com a morte e com os animais da terra.”
Livro das Revelações, Capítulo 6
Chega em cópia restaurada a obra de 1985 que é descrita como um dos “maiores filmes de guerra de sempre”.
Porém, cautela ao espectador que pensa em encontrar aqui o seu arquétipo bélico: “Vem e Vê” foi criado como uma experiência sensorial e emocional que cada vez mais encontra “atualidade” nos tempos que correm.
O "louco" bem avisou: escavar por aquelas terras seria entrada direta na caixa de Pandora, nada de bom sairia daqueles cantos. E o realizador Elem Klimov deu como aberto essa mesma boceta: os horrores serão presenciados pelos espectadores tendo o jovem Fyora (Aleksey Kravchenko) não como um guia, mas uma indesejável testemunha.
Se existe cena, ou diríamos antes, mixagem, que deixa a nu a natureza de "Vem e Vê", ela está concentrada nos primeiros minutos, em que o nosso protagonista, após descobrir uma espingarda em terras de ninguém, decide alistar-se na resistência bielorrussa contra as tropas invasoras - os nazis - que minavam todo aquele território com as mais infames barbaridades.
Porém, o crucial desta iniciação é mantida dentro da casa de Fyora, o seu sorriso de felicidade ao ver dois dos seus futuros “camaradas” prontos a encaminhá-lo para o clandestino acampamento, subitamente partindo para a mãe, desesperada, que pressente uma última vista ao seu rebento. Este contraste de expressões, de sentimentos, é uma colagem introdutória a uma análise cuidadosa desta passagem da fantasia a um imparável pesadelo.
Tudo parece correr como planeado. Fyora integra a resistência com dedicação e sobretudo motivação pela causa, mas apercebe-se do que o rodeia no preciso momento que se perde do resto do pelotão. O choro é transposto para a gargalhada, e vice-versa, a negação que o mantém na perseverança de um sonho, uma ingenuidade no alvo de uma violação de consciências.
O nosso “herói”, como é descrito nas enésimas sinopses, não é mais uma personagem de consequências, é um espectro que paira num cenário dantesco da banalização do mal e a sua superlativa devoção.
"Vem e Vê" perde-se do rasto dos outros retratos da Segunda Guerra Mundial por se “reduzir” à sua pequenez humana. Ou seja, não explora o heroísmo, nem sequer invoca o esplendor do bélico. Aliás, renuncia ao belicismo, despindo o seu "encanto" e apostando contra a sua doutrinação. Possivelmente é dos filmes de guerra mais adversos à sua essência, o verdadeiro "antiguerra", não o oposto que muitos desejam proclamar de peito aberto.
Obviamente que toda esta boleia pela barca de Caronte se faz pelo grau dimensional de psicologia imposta por Klimov, seja através da impotência do seu protagonista, quase reduzido a uma somente perspetiva, seja pelos constantes foras-de-campo (os "travellings" "tarkovskianos" que perseguem Fyora, condicionando diversas vezes o ângulo do espectador) ou os ecos de trevor que se assumem como sonoplastia, como se transportasse a personagem para fora do seu corpo (porque esta sua carne já não lhe pertence). Eis um mero farrapo humano condenado a deambular nas cada vez mais escassas réstias de existência, citando "tintim por tintim" o negativismo extraído de Primo Levi.
Novamente recorrendo à melodia fúnebre do contraste, o assombro gemido que alustre como uma atmosfera sonora, partilha o seu espaço com Mozart, pontuando a sua “civilizada” barbárie – no fim de contas, como é dito num discurso seminal do militar das SS, toda a violência emanada é inibida de sentimento e remorso, uma limpeza étnica, um embate entre castas humanas e a produção de uma civilização superiorizada tendo em conta uma “gloriosa” História.
A desumanidade contamina qualquer imagem: “Vê e Vem” é, em toda a sua inglória, um filme produzido com um tenebroso gesto de revolta, pesar e repudia ideológica. Mas Klimov tece-o sem acórdãos descarados da propaganda, ruminando uma reprimida emoção, um "fardo" que pretende carregar colocando em risco a sua narrativa e o seu protagonista, o inocente que se metamorfoseia em frente aos nossos olhos.
"Vem e Vê": nos cinemas a 29 de agosto.
Crítica: Hugo Gomes
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