Mais do que pelo relato de episódios da vida política, "A Dama de Ferro" tem sido falado por abordar a faceta humana da sua protagonista, caraterística inesperada, ou quase, para muitos detratores da primeira-ministra britânica entre 1979 e 1990 - que lhe atribuem traços de personalidade menos simpáticos, como altivez ou arrogância. O filme da conterrânea Phyllida Lloyd tenta gerar empatia com o espectador contrastando os triunfos e as derrotas, o passado e o presente, a força e a fragilidade da líder interpretada por Meryl Streep.

Mesmo estando longe de ser admiradores de Thatcher, os Pet Shop Boys já tinham sentido um processo de humanização comparável quando o filme ainda não era sequer um projeto, há duas décadas - precisamente na altura em que a primeira-ministra não teve grandes alternativas senão abdicar do cargo.

"Estávamos fartos de Margaret Thatcher, tivemo-la durante 11 anos. Mas é engraçado porque no Reino Unido nunca gostámos muito dela e agora, a partir do dia em que saiu, é provavelmente mais popular do que alguma vez foi. Senti alguma simpatia pessoal por ela", contou Neil Tennant, vocalista do duo londrino, em entrevista num programa televisivo sueco em 1990, pouco depois do final do terceiro mandato da mulher que mudara o Reino Unido na década anterior. "Acho que a forma como saiu foi triste. Estava a chorar no banco de trás do carro, fiquei com alguma pena", complementou Chris Lowe, a outra metade da banda de "It's a Sin" ou "Being Boring".

Esta relativa comoção não mudou, contudo, a opinião que a dupla tem do legado de Thatcher. Na mesma entrevista, Tennant mostrou-se peremptório a esse respeito: "É o membro da política mais sobrevalorizado que alguma vez existiu na Grã-Bretanha. Acho que não fez assim tanto, é mais imagem do que outra coisa. É libertador que ela tenha saído".

Tão longe e no entanto tão perto

Por ironia do destino, apesardo considerávelafastamento ideológico os Pet Shop Boys estiveram, durante anos, bastante próximos da então primeira-ministra - geograficamente, entenda-se. "The Ghost of Myself", um dos lados B incluídos no disco duplo "Format", editado esta semana, passa por aí, porque embora tenha sido lançado originalmente com um single de 1999, fala de memórias mais antigas. E a sombra da Dama de Ferro não poderia deixar de estar presente, como em muitas outras canções da banda, relembra o vocalista na entrevista publicada no livrete do CD: "É um retrato de Chelsea em 1979. A senhora Thatcher vivia em Flood Street e havia por lá muitas equipas de jornalistas durante as eleições". Chris Lowe também recorda esses dias, salientando que "costumava passar por aquela casa a toda a hora quando ia para o estúdio de arquitetura".

Essa tradução do espírito de um tempo nas canções é logo evidente, aliás, no disco de estreia dos Pet Shop Boys - "Please", de 1986 -, do qual o single "Opportunities (Let's Make Lots Of Money)" se conta entre os exemplos mais emblemáticos. Muitos viram-no como um um hino aos aspirantes a yuppies de então, ainda que fazê-lo seja ignorar a ironia, por vezes tão perversa como certeira, que se esconde em várias letras do duo. "Ask yourself this question: Do you want to be rich?" ou "Let's make lots of money" ficaram como slogans do individualismo e materialismo propagados nessa década, mas tal como no cáustico "Money", livro do conterrâneo Martin Amis (editado dois anos antes), o tom da canção era mais de constatação (ou subversão) do que de celebração - por muito que os ritmos dançáveis sugerissem o contrário:

O dinheiro voltaria a ser motor de outros temas dos Pet Shop Boys. "Shopping", do álbum "Actually" (1987), também podia dançar-se despreocupadamente numa discoteca, cortesia do seu balanço eletropop, desde que não se pensasse muito na letra, bem mais cínica do que espirituosa ("We're buying and selling your history/ How we go about it is no mystery (...) Our gain is your loss, that's the price you pay/ I heard it in the House of Commons: everything's for sale" eram alguns dos dardos que a canção apontava aos reflexos da liderança de Thatcher). No mesmo disco, "What Have I Done to Deserve This?" seguia igualmente nessa direção, refletindo os vícios dos ideais conservadores ("You always wanted a lover/ I only wanted a job (...) I come here looking for money/ (Got to have it)/ and end up leaving with love/ Now you've left me with nothing").

Protestosnos subúrbios, guerra nas ilhas

As questões económicas e, em especial, as clivagens sociais, cada vez mais acentuadas, não ficaram de fora de alguns dos singles clássicos do duo. As raparigas da classe alta e os rapazes da classe trabalhadora estão no centro de "West End Girls" (1985), enquanto "Suburbia" (1986) vai buscar inspiração aos protestos de Brixton em 1981 e 1985, sintomas da recessão numa zona vincada pelo aumento da taxa de desemprego e criminalidade (sensação de insegurança que daria o mote para versos como "Suburbia, where the suburbs met utopia", "Break the window by the town hall/ Listen! a siren screams" ou o mais coloquial "Where's a policeman when you need one?"):

O contato com o perigo aumenta em "Violence" (1986), retrato bélico que, mesmo sem focar conflitos específicos, nos leva a desconfiar de que terá alguma ligação à guerra das Malvinas, travada quatro anos antes do surgimento da canção e um dos episódios mais controversos da governação de Thatcher. O confronto, solução extrema para unir um país em crise, catapultou a primeira-ministra para uma segunda vitória nas eleições de 1983 mas acabaria por ser um dos argumentos mais usados pelos seus detratores - consolidando, de resto, o epíteto de Dama de Ferro (a situação poderia ter como banda sonora as palavras desencantadas da canção: "The sons and brothers, fighting for another cause/ Anything to give their lives some meaning/ Busy with their guns and dreaming/ Far away from here/ (...) Said they would act in self-defense/ With violence").

Sobreviver ao dia para viver a noite

Seem muitascanções encontramos ecos das tensões do período em que nasceram, noutras os Pet Shop Boys mantiveram essa ligação optando por oferecer tentativas de escapismo e não tanto relatos mais turvos. Um escapismo procurado na própria música, orelhudae exuberante, e nos cenários de boémia noturna que permitiam romper com a rotina. Não seriam exatamente o antídoto para uma década de greves e manifestações, mas satisfaziam o desejo de evasão num sistema conservador.

Temascomo "I Want a Lover" ou "Later Tonight" foram, de resto, espelho de relações amorosas de travo consideravelmente liberal, longe da lógica "boy meets girl" de muita pop de então e, ainda assim, subtis e ambíguas o suficiente para não serem reduzidas a bandeira de qualquer orientação sexual (o que não impediu que a banda tivesse sido promovida a ícone gay ao longo da década).

À sisudez do dia-a-dia, os Pet Shop Boys respondiam com o refúgio lúdico na noite, abordado de forma direta em temas como "Tonight is Forever" ("The money's short and time is tight/ (...) We don't need any more when we dance/ I don't think of the future tonight") ou "Hit Music" ("I've been working hard all day/ To pay the bills I have to pay/ Don't have the strength to work all night/ Or fight until it's almost light").

Uns quarteirões adiante, em Flood Street, a música era outra, e no início da década seguinte a Dama de Ferro teria a sua última dança. Os rapazes, esses, continuam a dançar e a dar voz a uma Inglaterra que nem sempre se conhece a partir do Parlamento.

A compilação "Format", dos Pet Shop Boys, reúne 38 lados B e faixas bónus originalmente editados entre 1996 e 2009.

@Gonçalo Sá