Jorge Aragão é, certamente, um dos nomes cravados na história do samba e na construção da personalidade de um povo forjado na música. Em entrevista ao SAPO Mag, o compositor brasileiro falou sobre a felicidade e a curiosidade de poder ver pessoas a cantar os seus versos do outro lado do oceano.
Jorge Aragão não soube precisar a data da sua primeira vez em Portugal, mas lembrou o amigo Luciano do Valle ao explicar que o jornalista também estava em Lisboa quando pisou terras lusitanas. “Confesso que depois da pandemia, eu estava me preparando para cantar por aqui mesmo. Poder ir tão longe é muito, muito bom. Estou curioso pra caramba!”.
Com três datas fechadas em Portugal (Capitólio, em Lisboa, dia 9 de março; Hard Club, no Porto, dia 11; e Altice Forum Braga, dia 19), o sambista revelou sentir “um susto atrás do outro”, pois nunca teve uma rotina de viagens e a maioria de seus concertos internacionais teve lugar nos Estados Unidos.
“A Europa para mim é diferente. Antes eu não queria ir, mas depois me lembro de pensar ser um local mais charmoso, mais parecido com a minha casa, sei lá. Acho que me sinto melhor nesse lugar… E poder voltar com um projeto autoral, totalmente remexido, me dá a melhor perspetiva possível”.
Ao brincar que em breve será possível chegar “dublando” (pois, para sua felicidade, muita gente sabe de cor as suas composições), o sambista garante que “cantar é algo grandioso”.
E essa não é uma falsa modéstia. É sabido que em quase todas as rodas de samba ou blocos de carnaval, as canções de Jorge Aragão se encaixam como banda sonora de forma natural. A canção “Vou festejar”, por exemplo, é uma das mais tocadas em eventos culturais espalhados por Portugal, e a comunhão de alegria que se forma entre brasileiros e portugueses é palpável.
“É muito bom ouvir isso porque para você, o que é só um detalhe de registro, para mim injeta muita confiança. Principalmente nesse momento em que eu estou preparando essa viagem. Me sinto mais seguro ao saber que vou chegar onde as pessoas cantam a minha música.”
SAPO Mag - O que tem ouvido ultimamente? Há algum artista português que tenha chamado a sua atenção?
Jorge Aragão - Stefani, confesso que eu queria saber mais. Gosto da musicalidade mais calma, que rege essa área toda. Mas, eu sou muito focado em criar alguma coisa praticamente todos os dias da minha vida. Gosto de estar com o violão, o cavaquinho e uma percussão junto a mim para poder continuar compondo.
Quando ouço alguma coisa, não tem nada a ver com o samba. Hoje, por si só, ele não me alimenta dentro da harmonia que eu gosto de fazer, de ouvir o fio melódico… Acabei parando no tempo e não tenho vontade de ficar escutando o que está novo. A não ser as pessoas novas, porque tem muita gente nova tocando, cantando e fazendo samba bom. Quando eu descubro alguém na internet, vou logo escutar direitinho o que a pessoa está fazendo. Porém, a maioria não me agrada. Tenho certeza que não é culpa do compositor, é um padrão que as rádios escolhem porque acham que aquele é o perfil do ouvinte. E ali eu não consigo me enquadrar. Para não ficar deslocado, prefiro conviver com a minha música dentro de casa. Qualquer coisa que eu vou ouvir tem que me chamar a atenção pelo fio melódico. Quando chama a atenção, eu escuto um bocadinho.
Mas e fora do samba, o que gosta de ouvir?
Por incrível que pareça, eu tenho escutado muitos funks americanos e estou gostando muito da música gospel que os mais jovens estão cantando agora. Eles estão buscando uma harmonia muito rica e aquilo, sim, traz para mim a vontade de continuar fazendo o que eu faço, porque eu não tenho compromisso com a modernidade.
O que observo quando quero uma coisa mais voltada ao samba, é que tudo ficou meio complicado. Ouvindo nem tanto, mas quando eu vejo, fica na minha cabeça um padrão de pessoas cantando com sofrência, sabe? Sempre assim, fechando os olhos, parecendo que está doendo algo que não é a música, mas outra coisa, entende? Ai eu não consigo me empolgar como antigamente, quando era só pela música, melodia, e ritmo, né? Então eu tenho preferido escutar trabalhos fora daqui.
O seu último EP, "O Samba ainda é raiz", tem um single intitulado “Grande Duelo Final” que, além da metáfora na rima, onde a caneta é uma arma e as balas são os versos, também presta uma homenagem aos seus companheiros de composição. Atualmente, o que o leva a fazer uma parceria com alguém e o que é que já não tem espaço na música?
Estar com os meus parceiros começou a ficar mais difícil, até mesmo pelas atividades de todos eles. Geralmente, todo mundo tem uma demanda muito grande de compromissos. Por isso eu me atenho a momentos como esse, de poder lembrar dos amigos escrevendo e tocando as histórias que tivemos por essa vida.
O que não cabe mais é aquilo que a gente já conhece. Essa rejeição e esse trabalho, que fazem com que uma parcela do povo não seja respeitada como ela é, ainda me trazem tristeza. Mas, também, muita vontade de escrever é o que me motiva. Gente que está querendo limitar a existência ou a maneira como a pessoa consegue conviver com a sua vida… Isso me alimenta um bocadinho e permite que eu continue compondo, fazendo o que eu gosto.
Ao ver uma entrevista com o jornalista Franklin Martins (autor do livro “Quem foi que inventou o Brasil”), lembrei-me da sua canção “Identidade” (Se preto de alma branca pra você/É o exemplo da dignidade/Não nos ajuda, só nos faz sofrer/Nem resgata nossa identidade). Acha que a personalidade brasileira foi formada a partir da evolução da música? E, na sua opinião, o pode Portugal aprender com o Brasil através do samba?
Na minha cabeça eu não tenho muita dúvida de que a música sempre mapeou e nos formatou como seres humanos e brasileiros. Até porque você consegue contar a história do Brasil através da música, dos tempos e de suas memórias que estão aí. É possível alcançar isso muito rapidamente. A China também está usando muito isso, pois através das canções é possível trazer e até resgatar a memória de pessoas que já não estão muito bem. Elas conseguem retomar lembranças e voltam a sorrir com a música.
Poder cantar é algo grandioso!
Quando você falou sobre Portugal, pelo o que eu tenho visto, as pessoas estão fazendo bases musicais brasileiras em todo canto. Aí mesmo eu consigo saber de artistas que têm trabalhado muito o samba. A maioria não é de pessoas que eu convivo ou tenha intimidade. Estou até curioso, porque quero ver e saber mais sobre isso… Observar mais de perto. Eu sinto isso na França também. Tenho amigos lá que trabalham muito com roda de samba. E a gente consegue perceber ainda, via redes sociais, que a nossa cultura está sendo implantada por vocês, brasileiros que ousaram e tiveram a coragem de ‘meter o pé’, ir pra outro país e se adaptarem ao perfil europeu. A música estará sempre norteando também, colocando isso em evidência.
Existe toda uma curiosidade minha de viajar e saber o que o meu repertório pode alcançar… Saber o que as pessoas em Portugal querem me ver cantando. Poder chegar aí com alguém antes e falar ‘olha, essa aqui você pode cantar que todo mundo conhece, ou essa aqui também…’ seria o melhor dos mundos e eu faria meu repertório na hora para cada um desses lugares (risos).
A classe artística enfrentou um momento de grande dificuldade agravado também pela pandemia (coisa que você sabe melhor do que eu, pois viveu isso na pele). Qual é o principal desafio do atual governo e da ministra da Cultura, Margareth Menezes, face ao desmonte provocado nos últimos quatro anos de gestão no Brasil?
Primeiro, acho que a gente precisa acreditar no processo de cada governo com as mazelas, com os consertos e com a vivência que se tem também. Estou percebendo isso como alguém que já tem uma idade que permite não ser obrigatório sair de casa para votar. Sou hoje um grande espectador do meu país. O que me cabe, até onde sei que posso ter a minha palavra evidenciada, é através da música. Tenho uma confiança muito grande em ver as coisas se acertarem, né?
Que a gente possa realmente viver um caminho melhor, ajudando todos igualmente, pois o país precisa muito. Isso deve ser feito com calma, porque foram tantos governos… Já vi tantos modos do país ser governado que atualmente eu não tomo a rédea de qualquer partido assim, de cara, para poder dizer que agora realmente mudou e que nós conseguimos aquilo que nós queríamos. Eu aguardo com muita esperança que tudo seja muito melhor. Vou ser sincero com você, eu me decepcionei com tanta gente… Pessoas até amigas. Mas, neste momento eu estou envolvido... Eu acordo hoje mais abraçado com o meu país. Agora espero que todos entendam o que a gente está vivendo, trabalhando todos juntos para que o Brasil continue a ser o melhor do mundo.
Ver Beth Carvalho a interpretar “Coisa de Pele” representa, para mim e acredito que para muitas pessoas, um dos momentos mais fortes e bonitos da música brasileira. Você fará o seu concerto em Portugal na semana de luta das mulheres. Qual a importância do feminismo na construção do samba e o que pensa ser necessário para que mais mulheres sejam reconhecidas na música?
Eu acho fundamental, Stefani. Quando vejo mulheres com potencial, tento multiplicar muito aquilo que elas fazem. Tenho o cuidado de saber das pessoas que estão à volta no intuito de continuar agregando ainda mais força para que elas possam estar onde querem estar. Não tem essa coisa de ‘homem é que comanda’. Não existe mais espaço para um pensamento como esse. Hoje, eu curto muito a Marcelle Motta, uma pessoa do bem e que está cantando muito! E fico extremamente contente em saber que é nessa semana que estarei em Portugal. Tomara que eu possa ter a perceção de poder evocar ainda mais isso daí. E a Beth foi a representante maior do meu repertório, né? Eu curto muito essa coisa de poder estar convivendo com essas mulheres. Queria que tivessem muitas mais delas por aqui porque isso só fortalece todo esse sentimento.
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