"Reflektor", o single, elevou - e muito - a fasquia para "Reflektor", o disco. Nem seria de esperar outra coisa de uma canção que juntou os Arcade Fire a James Murphy - o ex-LCD Soundsystem que produz grande parte do álbum ao lado do mais habitual Markus Dravs - e ainda tinha, como bónus, o apadrinhamento de David Bowie em meia dúzia de palavras e os arranjos de Owen Pallett. Deste elenco de gabarito a desfilar num tapete de percussões e teclados cintilantes resultou uma canção com uma aliança invejável entre artista e produtor, num casamento perfeito que atirou a banda de "Funeral" para a pista de dança sem lhe retirar a grandiosidade mantida desde esse incontornável álbum de estreia.

Como qualquer primeiro disco marcante, "Funeral" é também a cruz que os Arcade Fire ainda têm de carregar, pelo menos junto dos fãs ansiosos por uma segunda epifania coletiva. E aí, apesar do excelente aperitivo deixado pelo single, "Reflektor" arrisca-se a ser mais um episódio num compasso de espera sem fim à vista. As notícias serão melhores para quem não tiver expectativas desmesuradas, já que o quarto disco do coletivo canadiano é mais um belo conjunto de canções, com a vantagem de ser também o mais surpreendente desde a estreia.

"Reflektor" chega três anos depois do triunfo comercial (e em parte crítico) de "The Suburbs", consagrado com o Grammy de Melhor Álbum do Ano e grande responsável por levar os Arcade Fire além da (crescente) imensa minoria que os acompanhou desde os primeiros dias. Se aí revisitavam memórias e sons da adolescência - relatos do quotidiano nos subúrbios, o rock quase sempre de tons clássicos -, os Arcade Fire de 2013 precisam de um álbum duplo para condensar a miscigenação de experiências, estilos e referências sentida nos últimos tempos.
Nestes 75 minutos e 13 canções não chega a caber o mundo inteiro mas há espaço para ritmos mais exóticos, ecos de um ensaio de Kieerkegard (que inspirou o título do disco) ou do mito grego de Orfeu e Eurídice, tanto pelo formato original como pela abordagem de Marcel Camus no filme "Black Orpheus", de 1959 (cujas imagens acompanharam o streaming de "Reflektor" no YouTube dias antes da edição), ou pela emblemática escultura de Rodin (adaptada para a capa do álbum).

Videoclip de "Reflektor:

Um melting pot tão abrangente pode parecer excessivo, até algo pesado, a seguir à relativa modéstia conceptual do disco anterior, e algumas letras sofrem com isso - agora são mais ambíguas, para não dizer vagas, e sentimos alguma falta dos relatos diretos de "The Suburbs". Felizmente, não é preciso mergulhar a fundo na lista de referências para apreciarmos a viagem (e viragem) sonora. A fasquia da faixa título é difícil de manter, mas não há muitas bandas da dimensão dos Arcade Fire que arrisquem um alinhamento tão desafiante - e conseguido, mesmo que nem sempre irrepreensível. Enquanto sucessores mais ou menos óbvios como os Mumford and Sons, Of Monsters and Men, The Lumineers ou Edward Sharpe & The Magnetic Zeros continuam a tirar partido de uma folk pop já esgotada, o coletivo do casal Win Butler e Régine Chassagne mantém-se uns passos à frente e a trilhar um caminho só seu.

Antes de "Reflektor", o caminho teve paragem no Haiti e na Jamaica. Um castelo jamaicano foi, aliás, o berço de um álbum que mostra, logo nas primeiras canções, essa marca identitária, e os palcos haitianos acolheram as apresentações e parte do alinhamento (em concertos com a colaboração de dois percussionistas locais e uns Arcade Fire mascarados e a responder pelo nome The Reflektors). O dub de "Flashbulb Eyes" e a (des)aceleração tropical de "Here Comes the Night Time", de estrutura mais espartana a lembrar os Talking Heads, estão muito longe daquilo a que os canadianos nos habituaram. E no caso (sobretudo no segundo), isso também está longe de ser mau.

Com uma turbulência nascida de ritmos caribenhos e linhas de baixo gordas, o disco 1 de "Reflektor" expõe um apelo físico mais vincado, tão distante do punk-funk da escola DFA, editora de James Murphy, como do que bandas contemporâneas dos Arcade Fire fizeram, ao terceiro álbum (com algum avanço, portanto), quando apostaram mais nos sintetizadores do que nas guitarras - caso dos Bloc Party, Franz Ferdinand ou Yeah Yeah Yeahs (embora estes últimos estejam consideravelmente mais próximos no recente "Mosquito", também aberto a subidas de temperatura).

A sequência de "Normal Person", "You Already Know" e "Joan of Arc" confirma que a primeira metade do álbum é mesmo aquela em que a banda se leva menos a sério. "Do you like rock and roll music?/ 'Cause I don't know if I do", lança Win Butler no arranque de "Normal Person", antes de se propor a questionar o que é isso de ser normal. A diferença é que as reflexões de um outcast, persona que o vocalista nunca abandonou, não têm agora um peso incomensurável nos ombros e ousam um registo mais espirituoso. Por isso, até temos excertos de introduções de atuações televisivas (como quem brinca com o peso da fama) entre bons concentrados rock e pós-punk que piscam o olho ao nervosismo dos Pixies ou dos Clinic - os momentos em que Régine é chamada a levantar a voz, conjugando-a com a do marido, são particularmente saborosos.

Da folia ao crepúsculo

Se a primeira parte de "Reflektor" é crua, soalheira, às vezes febril, a segunda revela-se mais esparsa e meditativa. "Here Comes the Night Time II" começa por refletir esse contraste ao substituir o ambiente lúdico da faixa homónima do disco 1 com um sinfonismo melancólico não menos envolvente. Mais difícil de digerir é "Awful Sound (Oh Eurydice)", que abre uma sequência de canções longas (a rondar os seis minutos) em modo onírico e psicadélico q.b.. "It's Never Over (Oh Orpheus)" oferece alguma candura - próxima de uns U2 nos momentos mais etéreos - depois de uma marcha comandada pelo baixo e percussão. Aqui encontramos os Arcade Fire entre o paraíso e o inferno, o abraço e a perda, a inocência e as dores do crescimento ("Now that you're over/ Then you will discover/ It's never over (It's never over...)"), temas caros aos canadianos.

Quando as sombras de "Funeral" começam a insinuar-se, "Porno" parece querer entrar (quem diria?) numa cabine do cabaret erótico dos Soft Cell: está lá o sintetizador infeccioso (e manhoso) muito anos 80, a voz sussurrada e aguda, a letra com maquilhagem simultaneamente real e metafórica ("Take the makeup/ Off your eyes/ I've got to see you/ Hear your sacred sighs"). Mas o desenvolvimento, mais moralista do que titilante ou sequer provocador, acaba por pertencer por inteiro aos Arcade Fire ("Little boys with their porno/ This is their world, where can we go?"), num retrato amargurado do zeitgeist - ainda que esteja a caminho da pista de dança.

Já "Afterlife" é um óbvio caso com potencial para concertos, prestes a tornar a solidão em comunhão num estádio apinhado. "Can we just work it out?/ Scream and shout /’till we work it out" são bem capazes de ser as palavras de ordem de "Reflektor" mais ouvidas nas próximas atuações, cortesia de uma canção que faz - como a faixa título - a fusão ideal entre as linguagens dos Arcade Fire e de James Murphy (e inclui vénia aos New Order pelo meio). Hino maior do que a vida com embalo eletrónico, antecede o remate de "Supersymmetry", bonita e discreta despedida e meio caminho entre a pop de câmara e uma atmosfera celestial.

"Do you like rock and roll music?" Quando ainda há discos como "Reflektor", não temos dúvidas nenhumas, Win...

@Gonçalo Sá