Quando, em 2012, Kendrick Lamar tomou o mundo de assalto, com o seu segundo álbum, “Good Kid MA.A.d City”, muito se falou sobre o futuro do rapper californiano. Ficámos com dúvidas sobre se iria conseguir manter a qualidade invulgar ou se seria apenas mais um falso “messias do hip-hop” condenado a cair na vulgaridade, como muitas outras promessas.
Entre 2012 e 2015, Lamar viveu muitos momentos de glória. Para além das críticas muito positivas que o disco recebeu, esteve em digressão com Kanye West e deu concertos um pouco por todo o lado. Esteve nas bocas do mundo graças ao seu verso no tema “Control”, de Big Sean, mas quando todos pensavam que conquistaria o Grammy de melhor álbum rap do ano, o galardão acabou por ir para Macklemore, com o disco “The Heist” (2012).
No ano passado, num período em que os EUA se viram envolvidos num novo drama racial, com as mortes de Trayvon Martin ou Michael Brown, o primeiro single de “To Pimp a Butterfly”, “i”, já estava disseminado pelas ruas e o tema receberia os grammys para melhor performance rap e melhor canção rap. Mas com os prémios chegou também alguma polémica: quando o chamaram para comentar sobre o caso Michael Brown, Kendrick foi acusado por alguns, entre estes os rappers Azealia Banks e Kid Cudi, de estar a ser ignorante e prepotente, por defender que muitos negros não se respeitavam a si próprios.
Eis que surge “The Blacker the Berry”, o segundo e mais recente single de “To Pimp a Butterfly”. É aqui que ficamos a perceber melhor a sua opinião sobre o racismo na América. “Responsabilidade” volta a ser uma das palavras de ordem depois de ter fechado o disco anterior, com “Compton”, tema em que a mãe de Kendrick o aconselhava a retribuir à cidade que o viu crescer e que dava nome à canção.
Este sentimento de responsabilidade guia não só “The Blacker the Berry” mas também todo o novo álbum. Neste sentido, “To Pimp a Butterfly” pode ser encarado como uma sequela do antecessor, não pelo lado cinematográfico que “Good Kid MA.A.d City” tinha, ou pela continuação da história pessoal de Kendrick, mas pela questão da responsabilidade dele com o mundo e vice-versa.
Liberdade e justiça para todos
“To Pimp a Butterfly” é um disco denso, a história de uma nação que ainda luta por fazer valer o lema “one Nation under God, indivisible, with liberty and justice for all” (uma nação guiada por Deus, indivisível, com liberdade e justiça para todos). Os EUA continuam divididos e o desgaste das injustiças é cada vez maior.
No meio dessa comoção, Kendrick sentiu que o seu papel perante os ‘irmãos negros’ passaria por tentar perceber o que se passava, de onde vinha tudo isto e qual a melhor solução. Esta ideia é materializada através de um texto que Lamar vai desvendando aos poucos durante o alinhamento, um relato que serve de guia e ajuda a manter o álbum coeso.
Nessa busca pela origem do problema, fala, por exemplo, do amor ao dinheiro, retratado em temas como “Wesley’s Theory”, uma referência ao caso Wesley Snipes, ator condenado a três anos prisão por fuga aos impostos. Em “Wesley’s Theory”, K-Dot, como Lamar também é conhecido, canta um pouco do ‘sonho cliché’ de muitos negros: o que fariam quando se tornassem ricos. O sonho capitalista, a venda da alma, tudo rimado na primeira pessoa, mas com a promessa fina de se acabar como Wesley Snipes antes mesmo dos 35 anos.
“How Much a Dollar Costs” é outro tema em que o dinheiro é uma maldição, um dos melhores do disco pela inteligência com que foi construído e sobretudo pelo desenlace, muito semelhante ao que Common fez em “I Used do Love Her”.
A mesma busca levou o rapper a revisitar factos históricos, marcantes em temas como “For Free? (Interlude)”, em que Lamar canta “Oh America, you bad bitch, I picked cotton that made you rich/ Now my dick ain't free”.
“King Kunta” é uma referência a Kunta Kinte, um escravo negro a quem foi dada a escolha de ficar sem perna ou sem pénis (escolheu a perna). A história serve de metáfora para este tema, em que Lamar revela sentir-se “desmembrado” à medida que é cada vez mais celebrado ou odiado.
Outra causa do problema da dita América racista, garante o californiano, é a falta de amor próprio, abordada em canções como “i”, o supracitado primeiro single do disco. Kendrick inspirou-se em fãs que lhe revelaram que não tinham vontade de viver. Por isso, o refrão é um convite ao amor próprio.
No disco, Lamar simula uma discussão durante um concerto e pergunta: “2015, niggas tired of playin' victim dawg/ Niggas ain't trying to play vic - since Tutu how many niggas we done lost?/ Yan-Yan, how many we done lost?”. E depois segue em acapela com a sua definição de ‘nigga’ e com a origem da expressão.
No final do álbum, depois de “Mortal Man”, Kendrick lê todo texto que pontuou o alinhamento, a que deu o nome de “Another Nigga”. E salienta que o respeito é o que pode fazer a diferença na vida dos negros nos EUA, especialmente na relação entre si. Segue-se outro momento especial, a abrilhantar ainda mais “To Pimp a Butterfly”. Inesperadamente, ouvimos a voz de Tupac em conversa com Kendrick Lamar. Os dois falam sobre o que vai acontecer aos EUA se a sociedade não mudar.
Mais motivos para não deixar passar “To Pimp a Butterfly”? A profusão de géneros, numa viagem pelo free-jazz, funk, soul psicadélica, blues ou hip-hop. Não é nova: o álbum “Electric Circus”, de Common, ou o “Phrenology”, dos The Roots, exploraram uma sonoridade comparável. Mas é pelo menos renovada: o flow, a técnica de rimas e a capacidade contar histórias tornam Kendrick Lamar, muito provavelmente, no melhor rapper da atualidade.
“To Pimp a Butterfly” é sem sombra de dúvida um 10/10. Não tem canções óbvias para as rádios e discotecas, mas apostamos que é um disco que vai marcar uma geração. Dissemos que o autor era o melhor rapper da atualidade? Até podemos dizer mais: com um disco assim, Lamar ganha lugar entre os melhores de sempre.
@Edson Vital
Comentários