"Já tocamos com Lady Gaga desde 2006. A primeira vez que tocámos juntos foi num bar em Nova Iorque onde estavam só 12 pessoas, mas mesmo assim sentimo-nos super estrelas. E agora ela é mesmo uma super estrela", contou o vocalista dos Semi Precious Weapons ao início da noite de ontem, na primeira parte do concerto da cantora de "Poker Face".
Como mulher que leva o seu tempo a aperaltar-se - até porque vestiria uma dezena de fatos -, a "super estrela" nova-iorquina deixou o público à espera quase uma hora antes de finalmente arrancar a sua estreia em Portugal. E em vez de 12, contou com mais de 18500 espectadores, diferença que espelha bem a surpreendente rapidez com que Lady Gaga se tornou num dos nomes-chave da pop recente. Mas uma pop por vezes negra, como "Dance in the Dark" deixou bem evidente logo aos primeiros segundos. Atrás da batida dançável e do refrão eurovisivo esconde-se uma crónica de insegurança e rejeição, como aliás em muitas canções desta que é a primeira ópera electropop - a definição é da própria cantora.
Dos videoclips para o palco
Durante duas horas, esta ópera pós-moderna concentrou toda a extravagância e amálgamas que Gaga tornou marca registada nos seus videoclips. O contraste de imaginários, apesar dos altos e baixos, conseguiu sempre aquilo em que a artista é especialista: suscitar curiosidade e agarrar a atenção. A oferta mostrou-se, como se esperava, farta e sumptuosa, alucinante e grotesca.
O espectáculo foi da mega rave inicial, de tom futurista, ao ambiente bas-fond condimentado com um vão de escada, um carro abandonado e néones em "Just Dance" ou "Beautiful, Dirty, Rich". E antes de, já para o final, propor um duelo entre Gaga e um monstro (o gigantesco monstro da fama, ex libris cénico da noite), em "Paparazzi", convocou freiras zombie em "Lovegame" ou um tornado luminoso antes do oásis de "So Happy I Could Die".
Cada um é como é
No desfile de cerca de duas dezenas de canções, Gaga tanto surgiu quase nua como praticamente sufocada em roupa, vestindo e despindo personagens num espectáculo com uma componente teatral bem vincada. Mas se a estética primou pela simbiose entre estranheza e sumptuosidade, na essência o concerto celebrou a auto-aceitação e o amor universal.
"Sabem, eu não era muito popular no secundário. As minhas colegas eram más para mim por ser diferente, gostar de jazz ou cantar no coro", revelou num dos muitos momentos em que se dirigiu ao público. "Mas sabem que mais? Não me importo porque nasci assim", complementou, explicando a origem do título do seu próximo álbum, "Born This Way", previsto para Maio de 2011.
Partindo destas experiências, aproveitou ainda para deixar um conselho repetido várias vezes: "Tenham orgulho em vocês próprios, não tenham medo de ser diferentes, de ser o que são". Certo, não será a mensagem mais original ou profunda. Mas quando muitas cantoras pop promovem, mesmo que inconscientemente, a standardização de estilos e comportamentos - dando a entender que pouco mais importa do que ficar bem num biquini -, este contraste chega a ser refrescante e até pareceu genuíno.
Cantar, orar, amar
No meio de monstros e atmosferas de terror (com algumas sequências gore nos interlúdios, algo extremas para um público com muitas crianças), Gaga lutou pela tolerância e uma faixa considerável dos espectadores teve um destaque especial. "Quero dedicar esta canção a todos os meus gays portugueses", gritou ao apresentar "Boys Boys Boys", concentrado de hedonismo que teve acompanhamento condizente - os seus 11 bailarinos em tronco nu e com calças brancas justas (ou não fosse a cantora um ícone gay).
Mas se o sexo é um tema forte no seu trabalho, a religião não o é menos. Até porque Gaga se encarrega de os juntar várias vezes, como no momento em que criticou a Igreja e defendeu a universalidade do amor de Jesus. A crítica surgiu interligada com o elogio a um dos seus bailarinos, num dos seus comentários mais aplaudidos: "Gosto do Miguel porque ele gosta de raparigas portuguesas. E de rapazes portugueses. O Miguel é como Jesus, gosta de toda a gente".
Nacionalismo e virtuosismo
Tanta tagarelice trouxe a espontaneidade que por vezes falta a concertos onde o alinhamento não tem margem de manobra (alô Janelle Monáe), ainda que às tantas os repetidos agradecimentos de Gaga se tenham aproximado do ponto de saturação. Não faltou sequer a tradicional cena com a bandeira portuguesa - como se a histeria até aí não fosse já suficiente - e não haverá muitos os concertos onde a referência a Portugal tenha sido tão constante.
Seja como for, a entrega e simpatia foram inegáveis, e por isso até se perdoa que os "pequenos monstrinhos" a quem Gaga tanto agradeceu tenham soado sempre a "pequeños monstriños". E como a artista não quis enganá-los - ou sequer deixá-los na dúvida - fez questão de esclarecer que não fez playback em nenhum momento do concerto. Os mais cépticos tiveram oportunidade de desfazer qualquer suspeita em "Speechless" e "You and I", temas em que a "super estrela" deu folga à megalomania para cantar e tocar piano.
Nestas canções, mais intimistas e a milhas do techno ou eurodance, Gaga mostrou que é bem capaz de ser mesmo a filha bastarda de Elton John (a expressão é do próprio), expressando-se num registo mais próximo do que desenvolveu antes de editar "The Fame".
Dispensava-se, contudo, a transformação de um episódio curioso numa exagerada demonstração de virtuosismo performativo e sobretudo vocal, já que em "You and I" a artista teve - literalmente - um pé no piano e outro na guitarra, exibindo perante tudo e todos a potência da sua voz (com os piores tiques dos concursos de música televisivos).
Pouco depois, portentos como "Alejandro", "Poker Face" ou "Bad Romance" (esta já no encore) garantiram que quaisquer excessos fossem rapidamente esquecidos, rematando um concerto cumpridor, profissionalíssimo e até empolgante. Derrotado o monstro da fama, em palco ficou apenas o monstro da pop, Lady Gaga - este monstro já nem precisa de mais amigos mas ainda assim conquistou a pulso alguns milhares.
Texto @Gonçalo Sá/ Fotos @Lusa
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