Palco Principal – “As Aventuras do Homem Arranha”, disco lançado em 2008, iniciou uma obra a três tempos. De que forma o seu sucessor, “Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo”, integra esse ciclo?
Manuel Fúria – “As Aventuras do Homem Arranha” é o primeiro, o “Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo” é o segundo, e depois virá um terceiro, que há de sair assim que eu sentir que está pronto para tal. Esse disco surgiu numa altura em que Os Golpes estavam numa espécie de descanso. É um disco pequeno, com cinco músicas. As ideias que lá estão têm a ver com as coisas que escrevia com a banda. Como só tinha os temas d’ “As Aventuras do Homem Arranha”, os concertos tornavam-se em algo instantâneo. Então fui escrevendo mais canções, que acabaram por ficar em sítio nenhum. Comecei a pensar numa resolução para estas músicas e foi assim que organizei, na minha cabeça, aquilo que viria a ser este novo disco. Na construção do “Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo” percebi que as coisas tinham a ver umas com as outras. O primeiro trabalho pode revelar uma perspetiva mais imediata de ser de um sítio pequeno e de estar num muito maior, uma espécie de inadaptação; o segundo revela o cansaço dessa condição e a vontade de procurar um sítio para estar tranquilo.
PP – Sim, o Manuel passou a sua infância em Santo Tirso. De que forma é que viver numa localidade mais isolada do ritmo frenético das grandes cidades influenciou o seu crescimento e abordagem musical?
MF – Nasci em Lisboa e, com alguns meses, fui viver para Moreira do Conde, e só depois para Santo Tirso. As coisas que faço não são, propriamente, autobiográficas, mas com certeza que têm a ver comigo, com aquilo que faz parte de mim, com as minhas sensibilidades, com aquilo que me está latente. Santo Tirso tem a ver com isso, na medida em que é uma zona muito mal resolvida consigo própria. É uma zona de origem rural, dedicada sobretudo à agricultura, onde a malta rica do Porto ia passar férias. E, de repente, torna-se numa cidade, industrializada, que poderia ter sido uma vila muito bonita, mas que está ali encravada com um desenvolvimento estapafúrdio e mal pensado. De alguma maneira, aquilo que faço tem a ver com essas situações: com o mal resolvido ou com a vontade de resolver coisas, sem meios termos – mandar um bocado à fava essa ideia dos velhos costumes e ter uma atitude com mais garra. No extremo desta ideia, fazer como os ingleses, que fazem tudo ao contrário de toda a gente e têm orgulho e brio nisso – coisa que eu acho admirável.
PP – Entre os dois trabalhos em nome próprio surgiram Os Golpes, que, apesar do sucesso promissor, tiveram uma vida curta. Em que momento sentiram que era altura de seguirem outros caminhos?
MF – Não há uma altura específica – é uma coisa que se vai sentindo em dados momentos, até que chega um em que realmente faz sentido pensar em fazer outras coisas.
PP – Em “Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo” ouvem-se cantigas que contam uma narrativa – uma narrativa que denuncia a procura por algo. O Manuel acredita na busca pelo lugar individual de cada pessoa no mundo?
MF – Acredito que não seja um lugar geográfico, mas um lugar espiritual. A geografia é uma alegoria de uma coisa mais densa e invisível. Por isso é que usamos figuras de estilo para descrever coisas que não têm descrição possível. Com certeza que as histórias não são biográficas, mas têm muito a ver comigo. Essas personagens que vou criando são fantasias, são construções que partem de uma célula, que sou eu. Vou acrescentando camadas e camadas de artifícios, até que crio outra coisa para além de mim – uma construção pop, uma encenação. Sendo uma coisa verdadeira, é também uma farsa, no sentido teatral.
PP – A maioria das temáticas abordadas pelo Manuel na sua música não são muito comummente abordadas na pop, nomeadamente na pop portuguesa. São as letras o mais óbvio fator de distinção do Manuel?
MF – Se ouvires trabalhos do Nick Cave, percebes que ele fala de coisas muito importantes – sobre Deus, sobre saudade, sobre amor – mas amor a sério… Por isso, não acho que seja um exclusivo meu. Coisas escritas pelo Morrissey ou pelo Ian Curtis ou mesmo pelo Variações e pelos Heróis do Mar são coisas muito a sério – e é tudo pop. A piada dos códigos pop e da canção pop é, em três minutos, criar um mundo e destruí-lo. Podemos falar das coisas mais importantes porque, em três minutos, há espaço para uma vida inteira.
PP – Mencionou o António Variações… Confesso que, ao ouvir o novo disco, encontro um fio condutor que obedece ao ideal de “só estou bem onde não estou”. É um verso que faz sentido ser associado à sua música?
MF – Se pudesse traduzir as ideias que percorrem este disco ou o meu trabalho em geral em versos de outras pessoas, esse seria um deles. De facto, é uma ideia que, podendo não ser agradável ou desejável, me deixa muito à vontade. Gosto desse ideal de só se estar bem onde não se está, do ideal da insatisfação… Outro verso que poderia usar seria do refrão de uma música dos The Sound, chamada Heartland, que diz, com muita violência, “You’ve got to believe in a heartland. O “Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo” tem a ver com isso – com o querer acreditar que pode existir um sítio assim.
PP – Na mais recente edição do Vodafone Mexefest, o Manuel e respetiva companhia fizeram uma versão do tema Sonhos de Menino, de Tony Carreira. Como foi criar uma versão à la Manuel Fúria desta canção?
MF – Começou um bocado por graça… O Tony Carreira tem crescido muito e tornou-se numa personagem icónica e simpática. Mas esta graça não era irracional – tinha noção de que aquela letra e aquela música tinham alguma coisa a ver comigo. Quando peguei na música, percebi mesmo que é um tema que eu poderia ter escrito, um tema com uma letra bonita e bem feita. De alguma maneira, são palavras que eu já disse e vou voltar a dizer. Há uma ponte com a música popular em toda a sua ascensão, do Quim Barreiros ao Emanuel, passando pelo conjunto António Mafra, que me interessa construir. Interessa-me um Portugal total, com tudo aquilo que ele tem.
PP – Um Portugal que deixou de falar por si próprio, mas que o Manuel tenta, de certa maneira, lembrar, como trovador dos tempos modernos que é?
MF – Eu não sei muito bem se alguma vez o país teve essa garra… Talvez com o D. João II essa garra existisse mesmo a sério, mas, desde então, as coisas caíram um pouco em decadência. Mais do que tentar pôr o dedo numa ferida qualquer e dizer “vejam lá como somos mesmo uns palermas”, tenho uma vontade genuína de pôr as pessoas a cantar coisas portuguesas, como que uma reconciliação onde não haja grandes pruridos, grandes complexos sobre aquilo que nos distingue dos outros. É bom sermos nós e não sermos os outros. Se assim fosse, não tinha graça nenhuma.
PP – Em Canção para casar contigo, o Manuel canta “ó noiva, por favor chega atrasada”… Mais vale tarde do que nunca?
MF – No exemplo do “ó noiva, chega atrasada” há uma ideia de tradição, de protocolo – é suposto a noiva chegar tarde. É quase como um pedido de respeito à tradição, ao não mudar a cena, ao fazer as coisas como elas sempre foram feitas. É uma ideia de passado, presente e futuro – tudo ao mesmo tempo.
PP – Gosta de cantar o amor?
MF – Há uma definição de amor numa das cartas de São Paulo, que descreve muito bem aquilo que o amor é. Não é egoísta, não é arrogante… A minha definição de amor tem a ver com aquilo que Jesus nos veio dizer – para sermos mais sérios, mais honestos. O amor é a coisa mais importante de todas. Sem o amor, não faz sentido nenhum estar aqui.
PP – Um dos universos que também explora é o papel de Deus. No entanto, a certa altura da sua vida, o Manuel foi estudante de filosofia. De que forma é que o pensamento crítico da filosofia de opõe à religião?
MF – Estudei dois anos filosofia e depois fui para cinema. A filosofia nunca mais acaba. Do Friedrich Nietzsche ao Kierkegaard vai um grande salto. Há filósofos crentes; há outros que não são. Esta disciplina ajuda-nos a arrumar a cabeça, a termos um mais completo conhecimento sobre o mundo, sobre as coisas e sobre as pessoas. Mas, para mim, nunca nada poderá pôr em causa Deus. Somos demasiado pequenos para conseguir, sequer, entender esse mistério. Esta noção está para lá de qualquer filosofia, de qualquer estudo científico. Não põe nada em causa – é uma ferramenta que ajuda homens e mulheres a estarem mais completos.
PP – Essa crença em Deus aplica-se ao panorama musical tradicional?
MF – Sempre tive fé na música portuguesa, senão não fazia o que estou a fazer. Há muitas coisas boas a acontecer, assim como algumas más. No outro dia, estava a conversar com um amigo meu, que não é propriamente da música, que me dizia uma coisa que é muito verdade: a música nunca esteve tão boa. Neste momento, se não existisse mais música para além da portuguesa, ele estava tranquilo só a ouvir o nacional. Estamos a viver o melhor, nunca foi tão bom. A malta fala dos anos 80, mas o que está a acontecer agora ultrapassa isso. Mais do que fé na música, tenho certeza. Não é uma esperança cega.
PP – Do amor para a religião, da religião para a música… e agora para o cinema – área em que acabou por fazer a sua formação universitária. Quais as obras cinematográficas que mais o marcaram?
MF – Gosto muito do filme “Às Portas do Céus”, do Michael Cimino e, durante muito tempo, o meu filme favorito foi o “Os Verdes Anos”, do Paulo Rocha. Agora o meu preferido é o “Juventude em Marcha”, do Pedro Costa. O “Querido Diário”, do Nanni Moretti, foi um filme formador e estruturante. E também gosto muito de muita outra coisa. Gosto, por exemplo, do “Pedro, o louco”, do Jean-Luc Godard, assim como do “Elogio do Amor”. Mas acho que já se fez muito melhor cinema do que o que se faz atualmente. Desde há uns dez anos para cá que as séries televisivas estão a bater, aos pontos, o que se faz em cinema. O grande cinema que se faz é em televisão, mais do que nas grandes salas – o que é uma pena porque gosto de ver as coisas em grande.
Sara Fidalgo
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