Nota: antes de ler este artigo, recorde como começou a história musical de Bryan Adams nos capítulos anteriores deste especial:
De “Bryan Adams” foram trabalhados promocionalmente três singles: “Give Me Your Love”, “Remember” e “Hidin’ From Love”. Só o último fez algum progresso: 64.º lugar no top de singles canadianos e n.º 43 da Billboard Dance Chart. Das pistas de dança de Nova Iorque e Toronto terá chegado às discotecas do Estoril, frequentadas por canadianos e americanos da Nato e da comunidade diplomática espalhada pelo eixo Lisboa-Cascais, inaugurando em Portugal um culto único que usa uma música sua como hino.
Rádio: o eterno problema
Mas na altura isso pouco contava. Os dois países que compunham o maior mercado musical do mundo funcionavam negativamente como uma pescadinho-de-rabo-na-boca: a rádio americana desdenhava os artistas canadianos pela proteção que tinham nas rádios do seu país; a rádio canadiana desdenhava os seus próprios artistas porque achava que as quotas impostas por lei obrigava a dar-lhes exposição, independentemente do talento ou qualidade; para os canadianos, vencer nos Estados Unidos era a prova de que o seu compatriota tinha realmente “star power”.
Como os Bachman Turner Overdrive na segunda metade dos anos 70 ou os Loverboy no início dos 80, Bryan Adams também teve de “furar” nos Estados Unidos antes de convencer o Canadá e o resto do mundo. Para o conseguir teve não só de “work his ass” para alinhar todas as peças do puzzle, mas também tê-las prontas no “timing” certo. E isso seria impossível com a equipa e o plano que estava a ser cumprido até esse primeiro disco.
O manager Bruce Allen diz a todos os seus artistas: “Não interessa mais ninguém. Namorada, esposa, amigos, editoras, produtores, músicos; só interessa eu e tu. Eu sou o único que está cá para defender os teus interesses. Porque eu sou o único que só ganha se tu ganhares. Eu e tu e mais ninguém é que tomamos decisões.” E é dos dois a difícil decisão de prescindir de Jim Vallance como produtor.
A mudança na equipa
Apesar de confundir a data em que aconteceu, Jim Vallance confessa que inicialmente ficou em choque: “Tendo coproduzido o primeiro álbum do Bryan, naturalmente presumi que estaria ‘no comando’ do segundo álbum também. Acontece que fui a Toronto quando o Bryan se apresentou no clube El Mocambo, a 27 de outubro de 1981 (os Rolling Stones haviam feito um raro concerto lá alguns anos antes). O Bryan fez um ótimo espetáculo e depois fui ter com ele aos bastidores. É então que o manager Bruce Allen me chama de lado e diz que tem más notícias para mim... eu não produziria o próximo álbum do Bryan. Fiquei chocado! Atordoado! Produzir significava tudo para mim. Era uma grande parte de ‘quem eu era’ (ou pelo menos quem eu pensava que era). Foi um momento devastador”.
A data não pode estar correta porque o álbum já tinha sido gravado na primavera desse ano e editado a 21 de julho, mas o facto é que Vallance não produziria mais nenhum disco de Adams, numa das mais acertadas decisões estratégicas de carreira musical. O próprio admiti-lo-ia mais tarde: “Embora as nossas capacidades de compor tivessem melhorado consideravelmente desde o primeiro álbum, foi a adição do produtor Bob Clearmountain que realmente fez a diferença em ‘You Want It You Got It’. Bob estabeleceu um padrão mais elevado ao contratar vários músicos experientes de Nova Iorque, vários dos quais continuariam a trabalhar com o Bryan durante décadas. A combinação das habilidades de produção de Bob e da experiência dos músicos deu a ‘You Want It, You Got It’ significativamente mais impacto do que o álbum anterior. Mais importante ainda, Bryan ‘encontrou’ a sua voz. Longe iam as afetações efeminadas de seus dias dos Sweeney Todd. Agora entregava-se ao estilo vocal gutural que se tornaria a sua marca registada.”
Jim Vallance continua a ser o maior parceiro de composição de Bryan Adams e é sem dúvida um dos pilares da dimensão que a sua carreira atingiu, mas percebeu que a sua quota parte era só essa. A direção estratégica estava agora clara e definitivamente fora da sua alçada, apesar de não significar que Adams se tornara um fantoche nas mãos do manager. É ele que decide, Allen agiliza. E se este não agiliza, fá-lo ele próprio. É ele que escolhe e vai atrás de Clearmountain: “Bob fez alguns discos de que realmente gostei” - explicou Adams à revista Goldmine em junho de 2022. “Um deles era uma música chamada 'City Drops Into The Night', de um artista chamado Jim Carroll, que ouvi e achei que tinha um som ótimo. Liguei ao David Kershenbaum, o A&R da A&M Records em Los Angeles (que tinha ido a estúdio quando gravaram o primeiro disco em LA), e perguntei se me podia pôr em contacto com ele. Marcou um encontro e, para resumir a história, fizemos o álbum. Ele reuniu alguns amigos com quem trabalhara noutros projetos, um deles era um baterista chamado Mickey Curry, o teclista Tommy Mandel e um baixista chamado Brian Stanley.”
Mas na realidade não foi assim tão fácil. Numa entrevista ao Independent em março de 2022, o jornalista conta que o primeiro encontro entre Bryan e Clearmountain não foi assim tão feliz e só a teimosia e fé do músico fizeram as coisas avançar. “Entrei no estúdio, estava à espera e apareceu um tipo de bicicleta. Era o Bob. ‘Olá, Bob, sou o Bryan.’ Ele olhou para mim, perplexo e disse: ‘Estou prestes a começar uma sessão, mas venha e vamos conversar’. Então fui até lá, toquei algumas músicas e ele disse: ‘Bem, olhe, eu realmente preciso ir, tenho coisas para fazer, mas vou acompanhá-lo até lá abaixo’. Enquanto descíamos no elevador, entrou o Ian Hunter, com quem ele estava a trabalhar. Eu era um grande fã de Mott the Hoople e pensei, 'Uau, Ian Hunter!' Bob disse: 'Ian, este é.… qual é mesmo o seu nome?'” Com uma receção destas, quem diria que Bob Clearmountain se juntaria a Adams, Vallance e Allen como o quarto pilar.
Bob Clearmountain
Cresceu em Greenwich, Connecticut, nunca gostou de ser músico, tocar em bandas e ser visto, mas teve o primeiro grupo de cavaquinhos aos 11 anos. Seguiram-se bandas de rock com que tocou nos bares e clubes da sua cidade e arredores, mas no subconsciente algo pairava desde os 6 anos, quando sonhou pela primeira com um estúdio. Quando o pai trouxe um gravador para casa, a “coisa” começou. Era para a mãe, professora, gravar as aulas e mostrar aos alunos o quão mal falavam, mas Bob agarrou a máquina e usou o altifalante como coluna para a primeira viola-baixo que comprara por 25 dólares. Aos 16 anos teve uma namorada cujo pai vendia componentes eletrónicas. Tinha revistas que o atraíam como um íman, principalmente as que incluíam fotos de estúdios, consolas e outros equipamentos. Ficava deslumbrado a folheá-las.
O vocalista de um dos seus primeiros grupos conhecia Michael Delugg, produtor e engenheiro de som nos Media Studios, e é assim que entra pela primeira vez num: Delugg dá-lhes as horas livres para gravarem uma “demo”. A banda acaba, mas Bruce decidira que era ali, atrás das consolas, que queria estar. Continuou a frequentar as instalações tentando convencê-los a contratá-lo até que a gestora dos Media Studios o mandou regressar em setembro, quando os estagiários acabassem os estágios e saíssem para retomar as aulas. Foi contratado para estafeta, mas logo que voltou do primeiro serviço foi metido como assistente de estúdio. A sessão era com... Duke Ellington.
Tornou-se técnico assistente, fazia pequenos trabalhos como dobragens e dava assistência aos engenheiros de som. Até que numa sessão dos Kool & The Gang o engenheiro escalado pôs Bruce na consola e sentou-se a ler o jornal. Nessa noite Bruce acabaria por gravar dois temas aprovados pelo artista. Seis meses depois o grupo regressou aos Media Studios e desta vez foi o engenheiro de som Tony Bongiovi que não apareceu (era famoso por não aparecer ou por desaparecer a meio das sessões). Foi novamente Clearmountain quem gravou. Até sair dos Media Sound trabalharia com Ben E King, Betty Davis, Richie Havens, Rupert Holmes, os Sparks e muitos outros, até que em 77 Bongiovi disse-lhe que estava a construir o seu próprio estúdio e convidou-o. E nasceu a Power Station. Bongiovi, Clearmountain e outros nomes que cresceriam na produção, como Ed Stasium, desenharam o estúdio de raíz e o primeiro disco gravado e produzido na Powerstation foi logo um marco: o álbum de estreia dos Chic de Nile Rodgers e Bernard Edwards. Na consola estava Clearmountain.
Bowie, Stones e Springsteen
Ainda hoje Bob Clearmountain é procurado para misturar todos os géneros musicais, já que deixou de produzir quando concluiu que tem mais prazer em ser apenas o engenheiro que grava e mistura. Mas no final dos anos 70, no meio da explosão musical que se vivia em Nova Iorque, produziu discos de punk ou new wave, como os Tuff Darts ou os escoceses Rezillos. A sua credibilidade e profissionalismo ecoou pela indústria como o engenheiro de som certo para criar êxitos, independentemente do género artístico; tanto conseguia agarrar o ritmo do funk e do disco, como a agressividade das guitarras punk e pelas suas mãos começaram a passar encomendas especiais como adaptar as masters originais em determinada direção.
O experimentalismo de Eno e Fripp em “Heroes”, de David Bowie (1977), por exemplo, foi remisturado por Clearmountain para o mercado americano; a versão máxi-single de “Miss You”, dos Rolling Stones (1978), cujo original incluído no álbum “Some Girls” fora gravado por Chris Kimsey, teve a sua mão a pedido dos próprios Stones, decididos a recuperar a sua relevância invadindo as pistas de dança; Jagger tinha ouvido o trabalho de Clearmountain com os Kool & The Gang. Fossem as guitarras mais puxadas em “Back On The Chain Gang”, dos Pretenders (1982), ou os ritmos dançáveis para os Roxy Music (“Angel Eyes”, 1979) ou Rod Stewart (“Da Ya Think I’m Sexy”, 1978), Bob "Was The Answer". Até Bruce Springsteen trocou os estúdios Record Plant pela Powerstation, depois de músicos da E Street Band como o teclista Roy Bittan ou a secção rítmica de Garry Tallent e Max Weinberg lá terem gravado, como músicos de sessão, o álbum de Ian Hunter. O próprio Bob Clearmountain contou ao podcast Gear Club em 2018. “Produzi o álbum do Ian Hunter, que usou alguns músicos da E Street Band; eles adoraram o estúdio e sugeriram-no ao Springsteen, que estava na Record Plant, que parece um armário. Eles iam começar o ‘The River’ e gravaram aqui um par de canções”. Clearmountain acabaria por misturar o primeiro single de Springsteen a entrar no Top 10 americano: “Hungry Heart”.
Quanto a Bryan Adams, Clearmountain gostou dele e das novas canções e estabeleceu um plano de trabalho. Adams recorda à revista Goldmine que “tinha ensaiado e tocado estes temas ao vivo durante quase um ano, tinha trabalhado os arranjos e tinha uma boa visão de como queria estruturar”. Mas raramente fala de ter despedido a banda toda 15 dias antes de entrar em estúdio. É Clearmountain que lhe resolve o problema recrutando os músicos de sessão que, no fundo, definiriam o som de marca do canadiano para todo o sempre. Com o manager Bruce Allen ao seu lado, Adams não se contentava com os “mínimos olímpicos” dos músicos que o acompanhavam há um ano, e enquanto a Vallance foi retirada a função de produtor, estes foram pura e simplesmente retirados da equação. E não eram músicos de segunda categoria: dois deles - Paul Iverson e Darryl Kromm - formariam os Strange Advance pouco tempo depois e o baterista Jim Wesley voltou a ser contratado para a digressão de “You Want It You Got It”, o disco que foi impedido de gravar. Seja como for, ao escolher dois músicos que ainda hoje acompanham o canadiano, Bob Clearmountain acabou por ter um papel que se estendeu para além dos quatro álbuns que produziu. Porque não eram de facto vulgares músicos de sessão.
Mickey Curry - Bateria
Foi o professor de música que recomendou aos pais que lhe comprassem uma bateria. Mickey Curry tinha então 11 anos e o apoio da mãe foi constante. Teve bandas com os irmãos, mas foi o único que levou o desempenho a sério quando aos 15 ou 16 anos foi pago pela primeira vez: gravou bateria num anúncio de 38 segundos. Era tão novo que teve de ser a mãe a levá-lo ao estúdio, mas a decisão ficou tomada.
Começou a ir a Nova Iorque, a audições e showcases com bandas, passou a ser chamado para gravações e, sem dar por isso, estava em sessões nos melhores estúdios da cidade: Eletric Lady e Powerstation. Em 1981 trabalhou no disco a solo de GE Smith (diretor musical do Saturday Night Live e músico de sessão) e tocava bateria nos Tom Dickie & The Desires. O manager destes (Tommy Motolla) também era manager dos Hall & Oates, ouviu-os gravar uma “demo” nos Eletric Lady e pediu-lhe que deixasse o kit no estúdio e voltasse na semana seguinte para gravar com o duo.
Bob Clearmountain, que tinha produzido GE Smith no Power Station, telefona-lhe para vir trabalhar com Bryan Adams e duas semanas depois começa a gravar “You Want It You Got It”. Mas apesar de ser o músico que acompanha o canadiano há mais anos, não é ele que vai para a estrada de imediato; no Verão desse ano faz a tour de GE Smith, no outono a dos Hall & Oates, com quem fica até 86. Nos intervalos conseguiu ir gravando com Bryan Adams, mas só em 1987 é que vai com ele para a estrada, na tour de “Into The Fire”.
Tommy Mandell - Teclas
Tommy Mandell era teclista de sessão e Bob Clearmountain conheceu-o quando gravou os nova-iorquinos The Shirts e os discos a solo de Ian Hunter. Tal como Vallance, Mandell foi abalado pela atuação dos Beatles no Ed Sullivan Show. O pai ofereceu-lhe um órgão aos 16 anos e pouco depois entrou para a Universidade de Nova Ioque, onde estudou “songwriting” com Paul Simon. Os Simon & Garfunkel tinham acabado e Simon procurava algo de novo para suceder a “Bridge Over Troubled Water”. Simon organizou audições para selecionar os alunos e Tommy contou ao MusicXPlorer em março de 2021 que “ele não disse que gostava das minhas canções, mas mais ninguém na turma tocava piano e era necessário. Tinha 19 anos, e foi só um período porque tive de voltar para o Maine e completar a universidade. Mal conseguia porque estava morto por regressar a Nova Iorque. Estava num grupo com o Steve Love que se transformou nos Stories, que gravaram o ‘Louie Louie”, mas transformaram-se na banda suporte de outro artista e fiquei sozinho.
Depois foi assinado pela Epic, por 100 dolares por semana e a obrigação de me porem em estúdio e pagarem as sessões. Gravei várias canções que transformei numa ópera rock que chegou a ser comissionada para a Broadway, mas falhou. Estive nas produções da National Lampoon, na digressão de 77, e no “Hair”, em 78, onde o diretor de casting me pôs a trabalhar com a Ellen Folley, a voz feminina do “Bat Out Of Hell”, do Meat Loaf. O manager era o mesmo do Ian Hunter, que uma vez veio com o Mick Ronson ao ensaio da banda da Ellen e, no final, convidou-me a tocar no disco do Ian. Depois fui para a estrada com eles cinco meses, que acabaram por resultar no álbum ao vivo “Welcome To The Club” e entrei no álbum de estúdio seguinte, “Short Back And Sides”, que foi produzido pelo Mick Jones dos Clash e misturado pelo Bob Clearmountain. Ele gostou do meu som no órgão e chamou-me para gravar com o Bryan.”
Brian Stanley - Viola Baixo
Também conheceu Clearmountain nas sessões de gravação do álbum de G.E. Smith e foi chamado para tocar baixo em “You Want It You Got It”. Dos três músicos recrutados por Clearmountain, foi o único que não se manteve na carreira do canadiano: “O Bryan Adams sempre me impressionou pela sua visão e profissionalismo. Quer se goste ou não, desde muito novo que sabia o que queria e como o conseguir” - confessou ao blog pleasekillme em fevereiro de 2022. “Sempre teve a mente muito clara e o foco em chegar onde queria. Foi muito bom voltar a trabalhar com ele há seis ou sete anos, quando fizemos uma série de programas de televisão e o baixista não pode vir. Mas ainda bem que não fiquei com ele quando tive a oportunidade; deu-me a hipótese de ir com ele para a estrada, o Mickey Curry aceitou e ainda hoje toca com ele. Basicamente, passou a sua vida na estrada com o Bryan Adams. Não haveria maneira e eu ter a minha família e a vida que tive.”
“You Want It You Got It”
Em março de 1981 são estes três músicos, Bryan Adams e Bob Clearmountain que constroem “You Want It You Got It” entre a Power Station de Nova Iorque e o Le Studio, nas montanhas do Québec. Em Nova Iorque recorrem a dois guitarristas suplementares: Jamie Glaser (da banda do violinista Jean-Luc Ponty) e o próprio G.E. Smith. Tudo aconteceu em duas semanas e de forma fácil por todas as razões acima referidas: Adams sabia bem o que queria; os músicos eram dos mais qualificados que havia em Nova Iorque; Bob Clearmountain era, sem dúvida, O Engenheiro de Som e O Produtor certo.
Bryan Adams recorda à Goldmine: “Bob levou-nos para estúdio e deitámo-las cá para fora muito rapidamente, até porque não tínhamos muito tempo”. O baterista Mickey Curry lembra-se do espírito de espontaneidade das sessões: “A gravação foi divertida. Acho que não fizemos mais do que alguns ‘takes’ de cada canção e percebíamos que estavam bem enquanto gravávamos. O Bob ficava de pé na sala de controlo, ouvíamos os ‘takes’ com o Jim Vallance ao telefone e ajustávamos nos botões. O Jim tinha tocado bateria nas ‘demos’, por isso o meu trabalho foi bastante fácil: copiei muito dos seus ‘fills and feels’. Ele é um grande baterista e as partes dele eram mesmo boas; aprendi muito com ele nessas sessões.”
O teclista Tommy Mandel também recorda que foi tudo muito simples: “Lembro-me de estar naquela sala grande, o estúdio A da Power Station. É a minha cidade e já tinha trabalhado lá, mas desta vez foi especial. Éramos só nós os três a bombar as canções e o Bryan a cantar ao vivo. E isso não mudou nos álbuns seguintes: 5 miúdos numa sala a tocar músicas fixes, a fazer partes que faziam sentido e a divertirmo-nos”. Miúdos é “como quem diz”: Mandell com 32 anos até era o mais velho. Clearmountain tinha 28, Stanley 27, Curry 25 e Adams 22. Ele sim, era o “Kid”.
Como de costume, a maioria dos “media” canadianos e americanos começaram por ignorar o disco e a que fez exceção arrasou-o com a habitual dose de cinismo, ironia e desconfiança. A 12 de março, Boo Browning do Washington Post publicou:
“Claro que lamento que a indústria musical canadiana esteja a passar por momentos tão deprimentes ultimamente, mas, falando egoisticamente, é um alívio receber alguns dos seus artistas pop para compensar a pequena folga que existe nas ondas da rádio entre músicas dos Journey. Francamente, não tenho é tanta certeza de que a pop de farra e purga do Grande Norte Branco seja mais nutritivo do que nossa variedade local, mas depois de vários meses sob o reinado despótico de ‘Foreigner 4’, os Loverboy soam agradavelmente pouco ortodoxos.
O mesmo acontece com Bryan Adams, cujo ‘Lonely Nights’ está atualmente a chamar a atenção dos DJs de AOR mais sensíveis em todo o país. Na verdade, até nem é uma manobra tão delicada como pode parecer: o segundo álbum de Adams, intitulado "You Want It, You Got It", soa como uma aconchegante manta de retalhos de tudo o que pode ser transmitido na rádio: ‘Bruce Springfield meets Rod Stewart at the Genesis concert’ e assim por diante. Vocês percebem.
A voz de Adams tem uma rouquidão cultivada que é uma pausa bem-vinda no canto elegante de Steve Perry (Journey), e o seu jeito áspero de tocar guitarra combina com o seu canto. Também tem um excelente cocompositor pop, Jim Vallance (a dupla escreveu todas as 10 faixas, exceto duas). Adams e Vallance devem sua lealdade como compositores, assim como tantos bons escritores pop, às influências de Lennon/McCartney, e honram a tradição. Além disso, a projeção do trauma romântico de Adams é entusiástica, simples e sincera, como nestas linhas de ‘Lonely Nights’:
‘Baby, I Just Cant’s Stand Another Lonely Night
So Come On Over And Save Me’
A maneira como ele chega à tónica de “baby” e “save me” é nada menos que um requintado fraseado de rock.
E o dinheiro que a A&M gastou nesse disco! G.E. Smith (recentemente dos Hall and Oates) nas guitarras, Tommy Mandel (de Ian Hunter) nos teclados, Cindy Bullens nos coros. Sem mencionar a coprodução do engenheiro de primeira linha Bob Clearmountain e a masterização magistral de Bob Ludwig. Só faltava entrar no estúdio em marcha-atrás com o carrinho de brindes.
Também há uma boa variedade de canções aqui. Gosto do apelo cólico-Rick-Springfield de ‘Lonely Nights’, da doce sinceridade de ‘Don't Look Now’, da balada tosca ‘No One Makes It Right’ (dizem que essa música foi feita de uma só vez e eu acredito). Depois, há um rock mais pesado, como ‘Fits Ya Good’ e a faixa-título, que Adams afirma que faz seus dedos sangrarem.
Então, como é que ‘You Want It’ é afinal tão mediano? Bem, é assim que a pop americana é suposto ser atualmente: rápida, limpa e competente. Imediatamente esquecível, exceto pelo refrão não purgável. Não é exatamente digno de dançar, para não desgastarmos as solas dos pés. E totalmente desprovido de política, exceto, ocasionalmente, do tipo romântica.
A minha queixa não é que Adams não tenha talento, mas que ele parece ser um “Play-Doh” nas mãos de corporativos escultores de talentos. Na verdade, foi um desses pensadores profundos que descobriu uma demo da sua ‘Let Me Take You Dancin'’, que foi prontamente remisturada ‘cerca de 80 compassos rápido demais’, segundo Adams. Não importa: foi lançado de qualquer maneira como uma música disco, tornou-se um sucesso e resgatou o compositor da obscuridade, se não da confusão.
Então, que soprem os ventos mornos da indústria. Se tudo estivesse bem no mundo, todos estaríamos a ouvir Amy Volton, os Human League ou talvez mesmo Bryan Adams como Bryan Adams. Não é justo culpá-lo por ficar nervoso sempre que o fantasma da futura fome na indústria sacode suas correntes, mas quem sabe do que ele poderia ser capaz com um pouco menos de orientação e muito mais ousadia? Do jeito que está, Adams coloca o sentimento na grande pop americana AOR de forma tão inteligente quanto qualquer um da atual onda de refugiados do rock do Norte e do Sul. ‘You Want It’ é inócuo, ingénuo e destinado a ser tocado na rádio.
Infelizmente para Adams, o seu maior benefício pode ser explicar involuntariamente o que há de tão terrivelmente errado em tentar agradar a algumas pessoas o tempo todo. Por outro lado, 63 semanas consecutivas de REO Speedwagon (no top) não podem ser inteiramente culpa de diretores de programas idiotas e executivos de estúdio cínicos. Até que estejamos dispostos a colocar parte do nosso próprio dinheiro na porta da originalidade, não podemos reclamar se potenciais talentos do rock como Adams continuarem a se comprometer pelo objetivo mais seguro e lucrativo da competência mediana do rock.”
Ou seja: incapaz de negar o talento e não conseguindo atacar a qualidade das canções, que admite honrarem o legado de Lennon/McCartney, agarra pela negativa a avultada aposta da A&M no pessoal de serviço. E a seguir culpa os consumidores - que mantêm bandas como os Journey e os REO Speedwagon no topo das tabelas de vendas e rádio - de obrigarem os recém-chegados a usar a mesma receita. Como se uma receita que integrasse ingredientes como Springsteen, Rod Stewart e Genesis (da era “Turn It On”/”Abacab”) pudesse resultar num prato indigno de um menu.
A inveja subjacente às críticas da imprensa à programação das rádios mais ouvidas nos Estados Unidos justificava-se com a influência destas nas vendas, cada vez maior, enquanto a da imprensa escrita se tornava cada vez menos relevante. Perante um cenário de impossibilidade de agradar ao grande público e, simultaneamente, à imprensa de opinião, Bryan Adams escolheu o primeiro e “I Want It You Got It” foi apenas um exemplo inicial de como usaria os moldes da rádio americana para construir a sua obra, sem alterar um milímetro o moto de “criar canções que as pessoas possam cantar”. Se o manager Bruce Allen já sabia desde os Bachman Turner Overdrive e Loverboy que a rádio era primordial, Adams aprendeu depressa. Se queria que as pessoas cantassem as suas canções, o fundamental era serem ouvidas, não que se lesse sobre elas. E para serem ouvidas, precisava da rádio. Ninguém compraria um disco seu se não o ouvisse.
Mas a rádio hesitou em quebrar o monopólio dos Journey/REO Speedwagon/Foreigner/Styx a favor de Adams. Antes da chegada da distribuição digital, o caminho para o sucesso musical estava mais ou menos pré-estabelecido; dava muito trabalho, exigia sacrifício e requeria grande poder negocial, mas estava estabelecido: agendar um concerto num determinado mercado; colocar uma canção na principal rádio desse mercado; usar o concerto como veículo e conteúdo nessa mesma rádio e imprensa em geral (entrevistas, passatempos, campanhas de publicidade paga, etc.); carregar as lojas desse mercado com produto e exposição: discos, montras, posters, postos de escuta, etc. Até mesmo sessões de autógrafos e showcases como corolário de um objetivo de vendas atingido. Conquistado um mercado, geralmente a capital de um estado e arredores, passava-se a outro e repetia-se o ciclo de trabalho.
Era por isso que nos centros de despesa de marketing das editoras havia para cada disco havia uma gorda alínea com o “tour support”: as editoras dos discos financiavam os concertos dos artistas até estes conseguirem atrair bilheteira sustentável; a verba podia mesmo ir parar diretamente às mãos do agente ou manager de outro artista, para colocar um “novato” na primeira parte de uma digressão e garantir exposição às audiências certas. E, obviamente, a coordenação entre os esforços de marketing e vendas da editora, o poder negocial de um bom management ou agenciamento, completava todo o círculo: se havia um concerto em Chicago, lá estava a rádio de Chicago a fechar uma parceria com o organizador, a editora a agendar entrevistas, mensagens, passatempos e airplay, talvez um showcase exclusivo com a maior loja de discos de Chicago, que já foi visitada pela força de vendas e calendarizadas montras, postos-de-escuta, posters instore, etc. O objetivo era... vender discos.
Tocar ao vivo, portanto. Bryan Adams saiu de estúdio no final da primavera de 1981 com um disco de rock pujante, mas sem banda para o promover na estrada. O verão esse ano foi por isso passado em audições, ensaios e preparação de uma banda suporte, já que nenhum dos músicos de sessão que gravou o álbum estava disponível para concertos.
Keith Scott
Ao contrário do que se pensa, nem o primeiro nem o segundo álbum de Bryan Adams têm a participação do músico que o acompanha há mais tempo. Keith Scott é cinco anos mais velho e conheceu Bryan nos Sweeney Todd, quando este tinha 16 ou 17 anos. Foram-se cruzando regularmente em Vancouver ao longo dos anos e chegou a vê-lo ao vivo a solo, quando Adams tocava em bares apenas com um teclado. E desde essa altura viu um miúdo motivadíssimo e “workaholic”, sempre em contacto de uma maneira ou de outra. “Vamos comer uma pizza; estou por cá, bebemos um copo? Fazia networking antes do termo aparecer.”
Na escola, Keith Scott começou como flautista da respetiva orquestra apenas por conforto: morava longe e queria um instrumento fácil de transportar. Mas por volta dos 14 anos aprendeu a tocar guitarra sozinho e aos 17 obteve a sua primeira Fender Stratocaster, guitarra que se tornaria sua “imagem sonora”, replicando uma idolatria por Clapton, Jeff Beck e Jimi Hendrix. Mas nunca se “fechou” e é um ávido descobridor e colecionador de guitarras tendo a fabricante Gretsch lançado em 1992 a Keith Scott Nashville Gold Top, especificada por ele próprio, como agradecimento por tê-la usado no vídeo de “Everything I Do”.
No final do liceu tinha uma banda com colegas, entre os quais Darryll Krom, membro da primeira banda ao vivo de Bryan Adams, um dos despedidos 15 dias antes das gravações de “You Want It You Got It”. Mas Keith revelou-se imediatamente um talentoso e criativo às da guitarra, destacando-se dos colegas da sua idade e conquistando a admiração de músicos mais experientes. É recrutado para grupos de relativo sucesso no circuito de bares como os Bowser Moon, The Handley Page Group ou os Zingo, e aos 18 anos já atuava 300 vezes por ano no lucrativo mercado noturno da época. Mais velhos do que Scott, os músicos que o chamavam eram seriamente dedicados e profissionais cumpridores, o que o habituou desde cedo a uma rotina de dedicação e responsabilidade. Essa noção de profissionalismo impactaria Scott desde esses anos formativos, mas houve outro pormenor que o chamou à atenção: só os grupos que, além das “covers” que tocavam para encher a pista, iam revelando temas originais, é que davam o passo seguinte: gravar.
Foi abordado por Bryan Adams na cave do Fraser Arms, onde do grupo de versões com que estava na altura, os Bowser Moon, atuava regularmente. “Gravei um disco com o Bob Clearmountain em Nova Iorque. Não tinha orçamento por isso usámos músicos de lá, mas agora estou a formar uma banda para ir para a estrada” - disse-lhe. Ouviu “You Want It You Got It” e achou que podia fazê-lo ao vivo, mas o que o convenceu a deixar a posição confortável como músico de bar foi a sinceridade da promessa: “Não te convidei para o disco (“You Want It You Got It”) por falta de orçamento e tempo, mas se a promoção deste correr bem prometo que entras no próximo.” Keith Scott nunca tinha gravado e esta foi a melhor hipótese que lhe apareceu para o vir a fazer. Aceita o desafio e passa o Verão com Adams selecionando músicos e ensaiando a segunda banda de estrada do canadiano. Além de Bryan Adams e do seu antigo baterista Jim Wexley, o teclista de estrada dos Heart, John Hannah, e o baixista Dave Romner passam o Verão a ensaiar, com uma ou outra excecional sortida ao exterior como a atuação no Texxas Jam de 1981, a 18 de julho no Astrodome de Houston.
Isto anda tudo ligado: Irving Azoff e Harvey Weinstein
Era uma oportunidade a não desperdiçar: na poderosa guerra de managers e agentes pela supremacia do mercado americano nos anos 80, o management dos Eagles reinava. Era o Frontline Management de Irving Azoff, mais tarde presidente da editora MCA e de gigantes do showbizz norte-americano como a Ticketmaster e a Live Nation. Azoff, de baixa estatura e alcunhas como “anão venenoso”, impunhas as regras que queria já que geria as carreiras das maiores atrações de arena e estádio da época: Eagles, Steely Dan, REO Speedwagon, Journey, Van Halen, Stevie Nicks, Bob Seger... Azoff era alguém que convinha não contrariar, como perceberam os texanos Savvy. O jovem grupo ganhou a “battle of the bands” organizada pelo parceiro rádio do festival, sendo o prémio a honra de abrir o Texxas Jam 1980, um dos maiores festivais de rock da América.
Azoff embirrou e proibiu a banda de atuar não só nesse ano como no ano seguinte e os organizadores do evento tiveram de ceder: em 1980 os headliners Eagles e Cheap Trick eram da Frontline Management. Em 81 também: REO Speedwagon e Heart. Os Savvy foram novamente impedidos de atuar e em seu lugar tocou Bryan Adams; o manager Bruce Allen queria preservar as boas relações que tinha com Azoff, que dera ao seu outro artista, Loverboy, a digressão de outono de outra banda chave da altura, os Journey. Allen aliás, inteligentemente, acarinhava relações com todos os grandes managers da época - os organizadores do Texxas Jam trabalhavam Ted Nugent e Aerosmith, por exemplo - nem todos com a melhor reputação; sabia que precisaria dos seus OKs quando os promotores sugerissem artistas seus para a primeira parte ou quando surgisse a hipótese de uma digressão inteira.
Mas tirando esta e mais duas exceções, 1981 foi um ano doméstico de preparação de um espetáculo ao vivo sólido que sustentasse o assalto de Bryan Adams ao mercado americano, para onde o manager Bruce Allen canalizava todos os esforços. Para contrariar a pouca reação dos media e a falta de boa vontade da América aos seus vizinhos canadianos, usou todo o crédito ganho com os Bachman Turner Overdrive e lembrava constantemente a fórmula inabalável que estava a funcionar agora com os Loverboy; como vimos na parte 2, em finais de 81 os canadianos Loverboy tinham vendido nos Estados Unidos mais de 1 milhão de cópias do primeiro álbum e acabavam de lançar o segundo, “Get Lucky”, com entrada direta para o 72º lugar to top americano; só nesse ano já tinham feito a digressão dos ZZ Top e a dos Journey e acabariam por vender mais de 4 milhões de cópias. Com estes argumentos foi marcando datas de Bryan nos Estados Unidos para 1982, encaixando a estratégia: primeiro marcou datas no Canadá, que Keith Scott lembra-se de correr de uma ponta à outra entre meados de Setembro e finais de dezembro de 81, enfrentando os rigores do gelado inverno canadiano numa carrinha.
Entre as duas dezenas de concertos desta primeira “perna” da digressão de “You Want It You Got It”, apenas dois aconteceram fora do Canadá: um no Uptown Theatre de Kansas City a abrir para os Pretenders e outro num pequeno clube de Williamsville no estado de Nova Iorque. Se para o primeiro não encontramos explicação, o segundo fazia todo o sentido: a 20 minutos de Buffalo, uma hora de Rochester e duas de Syracuse, Williamsville tinha pouco mais de 5.000 habitantes, mas tinha o clube Stage One, que dava que falar por contratar desconhecidos que, entretanto, explodiam, como os Police. Além disso era no estado de Nova Iorque que as portas da rádio americana se começavam a abrir, com o primeiro single a penetrar nas rádios de Rochester, Syracuse e Albany.
“Lonely Nights” tocava de madrugada, onde os locutores tinham a prerrogativa de não seguir a playlist diurna. E os telefones começaram a tocar. “As folhas de chá” estavam a falar. Bruce Allen aproveitou mais um contacto feito ao longo dos anos: Harvey Weinstein, que viria a fundar a Miramax e afundar-se num escândalo sexual. Poucos sabem, mas antes de se tornar no mafioso gigante do cinema, Weinstein fez fortuna a organizar concertos na zona de Buffalo, estado de Nova Iorque; ainda estava na universidade e já era um dos maiores promotores locais, começando a comprar clubes, teatros e cinemas. O Stage One era um desses clubes. Convencer Harvey Weinstein do “star power” de Bryan Adams significava o acesso a um dos principais mercados musicais americanos, capaz de contagiar todo o país: Nova Iorque.
Quando a digressão de “You Want It You Got It” entra nos Estados Unidos em janeiro de 82, não é à toa que 3 dos primeiros quatro concertos são na zona de Nova Iorque. Acredito que, se andassem pela região na altura, ligassem a rádio ou visitassem as lojas de discos locais, fosse bem provável que algum sinal de Bryan Adams vos aparecesse. Cumprindo o ciclo: concertos, parceiros rádio com “airplay” e outros conteúdos, lojas carregadas de discos, montras e cartazes promocionais espalhados pela cidade... era a indústria musical no seu melhor e a caminho do seu pique com a massificação do CD. Mas isso vai ficar para a próxima.
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