Palco Principal - Como é que nasceu esta ideia?
Rocky Marsiano- Esta ideia vem ainda do tempo da Loop Recordings. Na altura, queríamos pedir a produtores e DJs que se juntassem a colecionadores de discos e os desafiassem a escolher exemplares das suas coleções para fazerem discos. Os anos passaram e essa ideia acabou por reacender dentro de mim. Como é óbvio, falei com o Rui Miguel [Abreu], pois temos um passado ligado à música que nos une como dois irmãos e lancei-lhe o repto, sem ter a mínima ideia do que ele iria escolher - quem conhece o Rui sabe que ele tem uma coleção extensa de discos de todos os géneros, desde bandas sonoras de filmes de terror até cenas muito específicas de krautrock. E por ser um apaixonado por música africana, o Rui acabou por escolher música das antigas colónias portuguesas, dos PALOP.
PP - E qual foi a tua primeira reação?
RM - Assim que eu vi o que estava dentro do saco mágico, soube logo que direção tomar, compus tudo na minha cabeça. Levei um ano a construir o disco, não por ter sido muito difícil, mas por ter exigido uma criatividade à qual não estava habituado. Alguns dos discos tinham muita pipoca, estavam em mau estado; outros estavam em bom estado de conservação mas careciam de alguma energia. Construí o "Meu Kamba" em três levas, ou seja, em três momentos criativos de uma semana cada, utilizando quase única e exclusivamente os discos do Rui Miguel.
PP - Atualmente, quando partes para um desafio deste cariz, já vais com um objetivo predefinido ou deixas o material sugerir-te um tratamento?
RM - É uma coisa que tem mudado bastante com o passar dos anos. Antigamente, quando samplava soul, funk e algum disco sound, procurava elementos específicos, os meus ouvidos só procuravam aquilo que fosse viável dentro de um certo padrão rítmico. Com o tempo, comecei a produzir diferentes géneros de música - tenho discos de house assinados com outro nome e tenho feito alguns beats de dancehall -, esse padrão deixou de existir e hoje já tenho a liberdade de fazer coisas que não fazia há 15 anos. Há discos que, quando oiço, me transmitem a certeza de que não consigo fazer nada; há outros que são desafiantes. E eu gosto disso, porque, quando se sampla, é importante injetar alguma criatividade e não nos limitarmos a colar elementos ao original. Isso era o que se fazia antigamente, por isso era mais “fácil” fazer instrumentais.
PP - Reparei que não trataste as músicas todas de igual forma, há uns temas que fugiram mais aos originais, outros nem tanto...
RM - Sim. O disco está dividido em três partes que, coincidentemente, correspondem aos tais três momentos de criação que tive. Alguns, apesar de terem recebido muito input da minha parte, assemelham-se mais a remisturas. Noutros já tive a liberdade de mexer mais: recortei bocados e fiz os samples entrarem dentro do meu padrão, e não o contrário. O terceiro momento, aquele que considero ter sido o mais criativo, acabou por ser a conjugação das duas coisas. Há temas que, apesar de parecerem remisturas, receberam muito do meu contributo, pois adicionei linhas de baixo e sintetizadores. Ou seja, há muito mais trabalho criativo.
PP - Ainda te lembras do teu primeiro contacto com a música africana, nos campos da produção?
RM - O meu primeiro contacto deu-se quando produzi e misturei o primeiro disco do Melo D, “Outro Universo”. Ele foi quase um pioneiro nessa cena em Portugal, o álbum dele foi buscar muitos samples à música angolana. E depois, claro, com o disco do Sagas - há lá muita influência africana, principalmente na parte vocal. Eu, por acaso, até tenho muitos discos de música cabo-verdiana (alguns até eram iguais aos que o Rui Miguel me emprestou), mas nunca me tinha dado ao trabalho de samplar, por não serem bons discos para rimar - são demasiado cheios. Mas neste contexto, do “Meu Kamba”, o caso mudou de figura.
PP - Já tiveste a oportunidade de visitar alguma das antigas colónias portuguesas?
RM - Estive em Cabo Verde há alguns anos, cerca de um mês, a visitar a família da minha ex-mulher. No entanto, o Cabo Verde que eu relamente conheço é o da casa do Nelassassin, ou o bairro do próprio bairro Sagas, que se assemelha bastantes às aldeias que podes encontrar na Ilha...
PP - E essa tua curta estadia em Cabo Verde influenciou de alguma forma este teu disco, a nível de inspiração, por exemplo?
RM - Para te ser sincero, não. Porque, quando tive em Cabo Verde, há uns cinco anos atrás, ainda não tinha essa sensibilidade. Por isso, não vou mentir, não vou dizer que sim (risos).
PP - Estiveste há pouco tempo em Portugal a apresentar o disco, certo?
RM - Fizemos uma pequena festa de apresentação, mas não foi ao vivo. Passei os discos que samplei.
PP - Não achas que "Meu Kamba" pede umas atuações acompanhadas por uma banda?
RM - Se vivesse em Lisboa, já tinha há muito formado uma banda, porque é mais fácil encontrar músicos com essa sensibilidade. Aqui em Amesterdão é muito mais difícil. E em termos de vida, ainda não tive essa vontade. Quero fazer isto ao vivo mas num formato DJ set. E vai depender muito dos sítios onde for tocar…
PP - "Meu Kamba" começou por ser editado em vinil. Como correram as vendas?
RM - Muito bem! Dois terços voaram no primeiro mês. E isso foi bom. Adorei a experiência e o resultado final, não só pelo facto de voltar a trabalhar com o Rui, pois não editávamos nada juntos há quase dez anos, mas também por ter sido um investimento de risco da nossa parte: os custos de produção do vinil são elevados e nunca sabes se as pessoas vão comprar. Mas acho que, tanto a capa, feita pelo Carlos Quitério, como a própria música, ajudaram a que pessoas respondessem ao apelo.
PP - O disco saiu há muito pouco tempo, porém, já pensas numa reedição... Fala-me um pouco sobre a tua ideia...
RM - O disco vai ser reeditado em formato digital, através de uma editora muito fixe de world music chamada Akwaaba Music. A versão digital vai ter mais temas. E alguns temas que estão no vinil não vão estar na digital, de forma a manter a edição em vinil realmente especial e limitada. A versão digital, essa, vai incluir quatro ou cinco faixas novas - que eu estava com dificuldade em terminar na altura que editei o vinil - com um formato inclinado para a pista de dança. No fundo, penso que a versão digital vai abrir algumas portas por estar associada a uma label que se mexe muito bem. Pode ser que me dê algumas datas para fazer gigs pela Europa...
PP - E já tens alguma marcada?
RM - Ainda não. Quando agendar uma data, será em Lisboa, pois o disco, embora esteja à venda nalguns países da Europa e no Japão, é, basicamente, conhecido em Portugal.
PP - Imaginas-te a embarcar novamente num desafio destes? Mas desta vez com outro género totalmente diferente?
RM - Talvez não. Eu raramente gosto de fazer a mesma coisa duas vezes. O meu futuro próximo vai passar pela reedição do meu primeiro álbum de Rocky Marsiano, que vai completar dez anos; quero fazer uma edição em vinil. Esse disco vendeu apenas na altura, mas, com o passar dos anos, várias pessoas têm vindo ter comigo a pedir o disco por não o conseguirem encontrar nas lojas. Eu próprio só tenho uma cópia. Continua a ser, passados estes anos todos, muito acarinhado pelas pessoas: há, por exemplo, temas que ainda passam na rádio… Por isso, decidi fazer esta espécie de homenagem àqueles que têm transmitido esse amor pelo disco.
Manuel Rodrigues
Comentários