Noiserv, alter ego para David Santos, teve a honra de abrir o palco principal ainda o sol fazia das suas. Ladeado por dois rectângulos que projectavam desenhos que iam sendo traçados em tempo real por uma desenhadora que lhe fez companhia, Noiserv levou-nos numa visita guiada à sua mágica caixa musical que incluiu paragens em estações como “Bullets on Parade” - onde uma máquina fotográfica dispara até a música crescer para uma canção que Tiersen poderia ter sonhado para “Amélie”, “Consolation Prize”, “Tokyo Girl”, “Bontempi” - uma viagem inspirada em Jean-Michel Jarre, onde a nave espacial é trocada por um balão de ar cercado por nuvens de gaivotas - “Melody Pops” ou “Palco do Tempo”, tema incluído na banda-sonora de “José e Pilar”. Claro que uma música destas, destinada a espaços pequenos e propícios à intimidade, potencia sempre ouvir conversas paralelas de festivaleiros e pérolas como “Não deixam entrar o grelhador, vamos jantar fora do recinto”, mas até que a coisa correu bem a David Santos. E ainda bem, dizemos nós, porque esta é uma música para ser ouvida enquanto se sonha de olhos bem abertos.

No palco secundário assistimos a um dos grandes acontecimentos do SBSR. Quem diria que B Fachada, esse bardo indomável que escreve música para meninos crescidos, que reinventa o triângulo das bermudas nacional composto por “Deus, Pátria e Família” e se prepara para lançar um disco de inspiração erótica, seria consagrado em pleno SBSR? “Memórias de Paco Forcado” abriu a cartilha e desde logo impôs o ritmo. Ao ouvir o público acompanhar o tema com grande entoação, lançando para o ar uns incentivos em nome próprio, Fachada partilhou a falsa indignação: “Homens a cantar por B Fachada?”. A resposta não se fez esperar e alguém grita “Só te falta seres mulher!”. O diálogo termina com a confissão de Fachada que se diz praticante da bela vida da monogamia. Estavam lançadas as bases de um grande concerto, que teve direito a duas baterias de brincar – tocadas por Mariana, uma delas pintada com Pocoyo e amigos -, a enganos saudáveis e totalmente perdoáveis – como em “Kit de Prestidigitação” - e a temas como “Tó-Zé”, “Questões de Moral”, “As canções do Sérgio Godinho” ou “Ficar à Espera ou Procurar”. “Vocês fazem a festa, nós só fazemos a música”, diz às tantas B Fachada. Pura verdade, a festa fez-se e foi imensa. Se alguém ainda tinha dúvidas essas foram ontem totalmente desfeitas. B Fachada é, merecidamente, um ícone da cultura popular portuguesa.

No palco principal era a vez dos britânicos Portishead darem um concerto que deve ter deixado muito boa gente de boca aberta. Depois da edição de dois discos míticos - “Dummy” (1994) e “Portishead” (1997) -, a banda regressou depois de um longo silêncio com a edição de “Third”, corria o ano de 2010. Talvez para mostrar que continuamos a viver num mundo perigoso, e que haverá sempre espaço para a reinvenção da música pop e para que se cante a morte, o luto e a desilusão.

Nos ecrãs, em vez da habitual transmissão em directo linear, alteravam-se imagens da banda a preto e branco - que pareciam estar a passar em câmara lenta - com estranhas projecções geométricas, interferências televisivas e todo o universo fantasmagórico da banda.

Não faltaram clássicos como “Sour Times” - com um balanço à Kruder & Dorfmeister - “Wandering Star” - música que poderia ser a fundação de uma nova igreja – ou “Glory Box” - entoado como se de uma bela reza se tratasse -, naquele que foi um concerto irrepreensível de uma banda que sempre esteve um passo à frente no universo da pop contemporânea. No último tema, que nos ecrãs evocava “A Estrada Perdida”, de Lynch, e aos ouvidos trazia a lembrança dos Joy Division, Beth Gibbons desce do palco e percorre toda a fila da frente, mostrando que o recolhimento e o ar solene com que a banda encara a música tem também o seu lado humano.

Se os Portishead encantam pelo seu lado negro e evocação dos poderes de feitiçaria, os Arcade Fire são de outro planeta. Os canadianos são praticantes de um outro tipo de religião, aquela que se centra no lado exuberante da vida, numa festa que começa desde o primeiro acorde e que, mesmo quando a música cessa, nos continua plantada na cabeça e em cada pedaço do corpo. Foi assim na noite de ontem, onde a banda deu o maior concerto do SBSR de 2011, e dizemos isto mesmo que o terceiro dia ainda não tenha sequer começado. Porque é impossível pensar em algo de mais grandioso do que aquilo que os canadianos conseguiram oferecer.

No cimo do palco, uns néons à moda antiga anunciavam “Coming Soon: Arcade Fire”. Ao centro um ecrã passa o trailer de “Over The Edge”, filme de Jonathan Kaplan no ido ano de 1979, e que foi certamente uma inspiração para esse grande feito musical dos Arcade Fire de nome “The Suburbs”.

Olhando para o rosto de cada um ao nosso lado, não havia dúvidas de que estavam todos prontos para a festa, mas ao canadianos não quiseram arriscar e começaram a noite com “Ready to Start”.

O resto foi um concerto único, uma comunhão incrível entre banda e público, e que levou mesmo Win Butler a sugerir que deveríamos abrir uma empresa nacional para mostrar ao resto do planeta como deve ser vivido um concerto dos Arcade Fire. Digam isto à Troika e talvez consigamos sair deste grande buraco. Butler faz também uma referência ao adiamento do concerto do Atlântico devido à cimeira da Nato, brincando ao dizer que tinham recebido um telefonema das Nações Unidas e de muitas embaixadas mas que desta vez ninguém os conseguiria parar.

“No Cars Go”, “Laika” - onde assistimos a uma espécie de duelo de bombos entre dois membros da banda -, “Keep the Car Running”, “Rococo” - um grande, grande momento rock -, “Crown of Love” - uma canção de amor onde os amantes Win e Régine, ao piano e na bateria, nos seduziram - ou “Month of May” - numa versão para lá do hardcore – foram alguns dos temas que fizeram deste um concerto inesquecível.

A viagem termina com “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)", um final Abbanesco onde Régine Chassagne se diverte , que nem uma adolescente despreocupada, numa dança com fitas coloridas. As portas deste país à beira mar plantado estarão sempre abertas para estes Arcade Fire. Quanto à festa vivida, essa estará para sempre trancada num dos nossos recantos mais secretos.

É bom ver como estes meninos cresceram, passando de uma banda que tocava em bancos de igreja a uma instituição que passou a ser alvo de um culto mundial, sem com isso ter perdido a criatividade, a independência e a exuberância. Cinco estrelas. Ou melhor, todas as estrelas que consigam avistar num céu iluminado.

Mais fotos do segundo dia do Super Bock Super Rock aqui.

Texto: Pedro Miguel Silva c/ Ana Cláudia Silva

Fotografias: Filipa Oliveira