Valete - Essa música saiu porque tive um amigo que foi para Luanda. Coloquei-a na net sem destino nenhum, nenhuma pretensão, nem sequer sei se vai sair no álbum… Quero fazer cada vez mais isto: sentir alguma coisa, por no papel, ir ao sítio, gravar e dar às pessoas. Não quero estar condicionado àquele processo burocrático de ficar um ano trancado num estúdio, fazer um álbum... Esta música é mesmo uma música do momento que estamos a viver. Provavelmente, se eu a guardasse naquele processo todo de fazer o álbum, já não faria tanto sentido como faz agora. Por isso não sei sequer se vai acabar no álbum. É muito provável que acabe, porque gosto da música, as pessoas também gostam muito... mas não tem um caráter oficial de single.

SAPO Música - Inicialmente nem tinhas pensado em partilhá-la com o público...

Valete - Sim, posso dizer que há muitas coisas que faço que nem partilho, são muito introspetivas, quase sessões de auto-terapia. Só partilhei esta porque convidei o Nuno Lopes para cantar o refrão e ficou tão bonito, tão bonito, que achei que todas as pessoas mereciam ouvi-lo. A música foi partilhada por causa dele.

SAPO Música - E o que te levou a escolher o Nuno para cantar aqui?

Valete - Já conheço o Nuno há muito tempo. Ele fazia parte de uma banda de rap e sempre o conheci como um grande cantor, provavelmente dos maiores cantores portugueses anónimos, ou semi-anónimos. Então já tinha a ideia de fazer alguma coisa com ele, porque acho que tem uma voz extraordinária. E quando ouvi a música, percebi que a voz dele era perfeita.

SAPO Música - Embora seja uma parte cantada, quase parece um sample dos anos 50, 60...

Valete - Muita gente diz isso (risos). Isso quer dizer que encaixou mesmo. Ficou tão harmoniosamente alinhada com o instrumental que parece um sample.

Videoclip de "Meu País" (com Nuno Lopes):

SAPO Música – Se este tema pode não entrar no álbum, quer dizer que ainda estás a planear o alinhamento? Como é que preparas um álbum fugindo ao tal “processo burocrático”?

Valete - Faço músicas que sinto que têm que ver com o que eu estou a viver, com o que as pessoas estão a viver, e tento não as guardar, partilho logo, porque acho que estamos a viver uma época fantástica a esse nível, não temos de esperar pelo álbum para apresentar as músicas. E acho que acontece pouco em Portugal haver músicos a retratar momentos políticos, momentos sociais e principalmente este momento, dos mais conturbados e caóticos que vi ao longo de 31 anos.

SAPO Música - Mesmo no hip-hop? Também aí sentes falta desse reflexo social ou político?

Valete - Muito, mesmo. Acho graça quando as pessoas dizem que o rap é música de intervenção quando não tem nada que ver com isso. No início até tinha alguma coisa, porque era uma música de zonas segregadas dos EUA e naturalmente eles falavam da sua condição social, de um povo oprimido e reprimido, por isso havia ali uma carga contestatária - muitas vezes com um discurso despreparado, o que era normal, porque era feito por miúdos. Mas com a globalização, com a massificação do rap, com a transversalidade, 98 ou 99% do rap não tem nada desse cariz interventivo ou sociológico. É muito residual o rap ligado a alguma ideia progressista, com alguma ligação a um movimento político. Em Portugal, contas pelos dedos de uma mão exemplos desses. No momento que estamos a viver, era importante termos mais vozes dessas, não só no rap mas na música ligeira portuguesa, no rock, no fado... Adorava ouvir uma música do Luís Represas a dizer o que é que ele pensa do Miguel Relvas, por exemplo. Ao mesmo tempo, gosto muito desta cara heterogénea que o rap tem agora. Gosto de ouvir um miúdo de Cascais a rimar sobre um dia de surf que ele teve, um miúdo do Alentejo a rimar sobre a sua vida... Há uma diversidade temática e musical fantástica, gosto muito disso. Mas devíamos ter, na linha da frente, rappers a falar do momento, a propor soluções, ligados a momentos políticos...

SAPO Música - Ainda assim, que vozes nacionais destacarias como exemplo disso?

Valete - Mais claramente, o Chullage... Depois há um ou outro que vai fazendo isso. Mas gosto de saber onde é que as pessoas se posicionam. Não basta dizerem que o governo é uma merda, que o sistema não presta. Gosto saber que tipo de governo querem, que movimento abraçam, e não conheço a ideologia de quase nenhum rapper em Portugal. Vou mais longe: não conheço a ideologia de quase nenhum músico em Portugal. São poucos os músicos que assumem as suas correntes ideológicas, e acho que isso revela alguma desonestidade moral perante o público, porque poderiam influenciar muita gente se assumissem as suas posições ideológicas. Não necessariamente em relação a partidos políticos, mas a movimentos cívicos, sociais...

SAPO Música - E no teu caso, que rumo apontarias como o ideal a seguir?

Valete - Bom, ficávamos aqui o dia todo, mas posso tentar resumir... Há uns sete ou oito anos, estava muito ligado a ideais marxistas, trotskistas, se calhar na altura ia dar-te esse discurso. Hoje já não estou tão ligado a isso e defino-me principalmente como um humanista. Um gajo de esquerda, obviamente, mas um gajo preocupado com as pessoas e as necessidades das pessoas. Tive oportunidade de viajar por grande parte da Europa e percebi que esta coisa de estarmos fanaticamente ligados a uma ideologia política, às vezes, é uma tontice, porque as ideologias políticas valem o que valem e para funcionar precisam de um determinado contexto histórico, político, social, cultural... Estive na Holanda, onde têm uma espécie de capitalismo social, e funciona. Se calhar em Portugal não funcionaria... Aliás, para o futuro, e sem querer ser um catastrofista, creio que isto tudo vai desabar. E vai desabar por três razões fundamentais. Razão número um: há um problema grave na segurança social. As pessoas que estão a trabalhar não conseguem e não vão conseguir descontar para nós pagar aos reformados que hoje vivem cada vez mais tempo. Isto vai piorar. Daqui a 10, 15 anos muita gente não vai ter reforma. É um problema que os políticos não estão preocupados em resolver hoje e que não vão saber como resolver daqui a 10 anos. Depois há a questão das dívidas soberanas e da intrusão das troikas e dos FMIs na soberania dos países… é outro problema que vai destruir a economia dos países. E vais ter países como a Grécia, Espanha, Portugal ou Irlanda de rastos... E depois um problema ainda maior, de que se fala pouco, é o do desemprego tecnológico. A tecnologia está a tirar mesmo muitos empregos e a tendência é aumentar. Eu, como empresário, se puder ter uma máquina que faz o trabalho de um homem e não recebe, não tira férias, prefiro ter a máquina. O desemprego tecnológico vai ser uma realidade brutal daqui a 20 anos. Vamos atingir o colapso. Vamos ter países com 50% ou 60% de desemprego, o que vai gerar motins, vai gerar o caos. E eu não sei o que é que vem depois do caos. Acredito que vai ter de se repensar isto tudo e uma das ideologias mais ostracizadas hoje, o anarquismo, vai fazer muito sentido daqui a 20, 30 anos. Não estou a dizer que sou anarquista, atenção, mas acredito que muita gente vai abraçar essa ideologia.

Videoclip de "Anti-Herói" (2006):

SAPO Música – Esta tua antevisão do futuro vai transparecer no novo álbum, “Homo Líbero”?

Valete – Eu comecei a fazer um álbum chamado ‘360 Graus’ que era catastrofista do princípio ao fim, mas não avancei. Abandonei a ideia porque achei que era irresponsável estar a passar uma visão catastrofista dos dias de hoje. Tenho alguma voz no hip-hop e na juventude que me ouve, então abracei agora uma ideologia, Homo Líbero, em latim – em português, homem livre – que fala da construção do homem que temos de ser para podermos ter um mundo realmente diferente. Por causa do caos económico, vamos ter de estar muito mais desligados das coisas materiais, teremos de aprender a viver com pouco dinheiro, a ser auto-suficientes. É disto que fala o álbum, da criação de um homem novo, não necessariamente o homem novo de Lenine, mas um homem diferente, melhor, menos materialista. Ou seja, inicialmente ia avançar por um álbum catastrofista, mas preferi avançar por um álbum de esperança. Se conseguirmos construir este homem, acho que temos luz, temos futuro. Se não chegarmos a este homem, acho que não há mesmo futuro.

SAPO Música – Já avançaste alguns convidados do disco - Sara Tavares, Gabriel o Pensador, Sam the Kid… Como é que vais conjugá-los com estas temáticas?

Valete – O álbum tem uma temática mas lá dentro cabem muitos tópicos. Quis convidar artistas que encaram a música um bocado como eu, que têm esta relação espontânea da alma com o estúdio. Eu, a Sara Tavares, o Gabriel o Pensador, o Sam the Kid ou o Orlando Santos gravamos o que sentimos. Eles não estão preocupados com o público, não estão preocupados com vendas, não estão preocupados com a editora… Acredito mesmo que eles gravam o que sentem. E o homem livre também parte daí, de nos libertarmos das pressões que nos rodeiam, de colocarmos a nossa alma no que fazemos. Quando convidei a Sara Tavares, convidei uma mulher negra, que dignifica a mulher negra, africana, e que tem esta relação com a música. Era uma miúda que podia ter seguido pela cena pop, mais radiofriendly, e optou por seguir a cena dela, mais étnica, aquilo de que gosta mesmo. A Sara não está, provavelmente, tão rica como poderia estar, mas está mais realizada, mais feliz.

SAPO Música – Não cederes a pressões, neste caso da indústria musical, traz-te constrangimentos?

Valete – Estamos a viver uma época fantástica para os músicos que muitos músicos ainda não perceberam. Cresci com a massificação da internet e sinto que cada vez que coloco lá uma música consigo chegar a quase toda a gente que gosta de Valete. Isto é fantástico, já não há um censor pelo qual tenho de passar. Quando estás numa editora, tens de lhe mostrar a música primeiro e a editora atua como um censor, um lápis azul. Agora, se fizer um álbum e a editora me disser ‘isto não é bem o que estamos à espera’, digo ‘Ai não é? Azar o vosso…’ e ponho tudo na internet. Quem eu quero que ouça está lá. Lembro-me de fazer maquetes há 15 anos e de estar dependente de o José Mariño gostar da música para passar na rádio. Se o José Mariño não gostasse na minha música, ninguém iria ouvi-la. Acho isto fantástico e muita gente não percebe. As editoras precisam muito mais dos artistas do que vice-versa. Claro que é bom teres uma estrutura que trate das coisas por ti para não estares a gerir toda a parte burocrática de edição, distribuição… Mas a parte de chegar às pessoas já não é um problema e já não precisamos de estar agarrados ao formato do single, do álbum, etc. Faz uma música e manda para as pessoas. Há um miúdo que para mim é muito representativo de como gerir uma carreira nesta era da internet: o Richie Campbell. Fez um álbum pela Optimus Discos, mas tem dois hits – ‘Blame It On Me’ e ‘How We Roll’ – que são hits que não estão no álbum, são músicas que ele fez e pôs na net. E se ele não cantar estas músicas nos concertos, as pessoas saem de lá frustradas. Acho que o futuro é isto. Eu ainda gosto daquela coisa do álbum, cresci a ouvir álbuns, acho que é uma arte do caraças fazer álbuns, acho que vou sempre fazer álbuns. Mas também vou entrar muito nesta coisa espontânea de fazer uma música e colocar na net. Se me apetecer fazer uma música sobre o Miguel Relvas, não vou esperar seis, sete meses até que o álbum saia. Ponho logo na net.

Mind Da Gap feat. Valete - "Não Pára" (2010):


SAPO Música – Já houve muita música em torno disso, não?

Valete – Sim, sim, muito ruído (risos). Eu até gosto do que ele representa. Acho que nunca vi, na política portuguesa, alguém tão representativo do que é ser um sem-vergonha.

SAPO Música – Uma caricatura?

Valete – É a caricatura completa do sem-vergonha. A minha mãe sempre me educou com muito cuidado, sempre me disse para ter vergonha, para não ser um sem-vergonha. E quando olho para o Miguel Relvas é fantástico… ou, como chamamos aqui na Damaia, ‘cara podre’, aquele gajo que não quer saber mesmo. Toda a gente sabe que ele é um pilantra, mas ele não se importa. Acho a personagem dele fantástica. Não se esconde, é inacreditável, e acho que ele é importante para haver um distanciamento mais rápido das pessoas em relação a estes políticos. É bom para as pessoas perceberem melhor como funcionam os partidos políticos e muitos dos políticos, para que, de preferência, se distanciem dos partidos políticos e que assim apareçam outros movimentos políticos que não sejam partidos. A presença do Miguel Relvas ajuda as pessoas a perceber isto tudo.

SAPO Música - Voltando às tuas canções, agora ao vivo, há algo que nos queiras contar a propósito do concerto desta sexta-feira no Campo Pequeno, em Lisboa?

Valete - Vai ter uma ou duas músicas novas, que nunca partilhei com ninguém, mas sinto que também devo às pessoas que seguiram Valete as canções que mais tocaram, as mais relevantes. Dá para encaixar tudo porque vai ser grande, vai ter duas horas - sem contar com a atuação do DJ Ride, do Xeg e do Regula antes. É o meu primeiro concerto em Lisboa em dez anos, vou ter vários convidados... Mais do que um concerto meu, gostava que fosse uma celebração do hip-hop português. Posso dizer que o hip-hop português nasceu com a compilação ‘Rapública’ e vai fazer 18 anos, vai ser maior de idade. Vamos ter de ser mais responsáveis e ter de merecer estas coisas… merecer grandes palcos, habituar o público a ir a grandes palcos para haver, finalmente, um crescimento e dignificação do hip-hop.

Valete atua esta sexta-feira no Campo Pequeno, em Lisboa, a partir das 21 horas.

@Gonçalo Sá