Na Filarmónica Nossa Senhora das Neves, nos Açores, músicos profissionais e amadores unem-se para fazer “boa música”, organizando festivais internacionais e formações com artistas conceituados, combatendo a ideia de que as bandas são o “parente pobre” da cultura.

A Banda da Relva, como também é conhecida, fundada em janeiro de 1866, tem atualmente cerca de 40 músicos e é um exemplo da relevância assumida pelas filarmónicas no arquipélago.

“Isto é muito mais do que uma banda, porque, primeiro, isto é uma família”, começa por dizer à agência Lusa o presidente, Paulo Vieira.

Quem integra a filarmónica tem de “gostar realmente de música” porque “não há ninguém obrigado”, prossegue o responsável, que não esconde o orgulho pelo trabalho realizado.

“Temos feito um trabalho sempre em crescente. Da maneira que estamos agora não podemos voltar atrás. Tem de ser cada vez mais, cada vez melhor. Cada vez mais, cada vez melhor. É isso que os nossos músicos sabem e a restante direção também”, afirma.

A banda, que tem sede na freguesia da Relva, no concelho de Ponta Delgada (ilha de São Miguel), organiza, por exemplo, o Festival Internacional de Saxofones dos Açores (FISA), que vai decorrer de 28 de setembro a 04 de outubro.

O evento vai incluir um concerto da filarmónica com Otis Murphy e João Pedro Silva no Teatro Micaelense, em 01 de outubro. Os dois músicos vão ainda integrar o painel de 11 artistas (juntando-se a nomes como Andy Scott, Mário Marzi ou Nelson Inácio) que vão lecionar um conjunto de “masterclasses” (aulas) pagas também integradas na programação do FISA.

Para suportar a intensa atividade, a banda “sobrevive” dos serviços que presta e dos apoios públicos ao nível regional, municipal e de freguesia.

“São os apoios possíveis, [mas muitas vezes] não são os que merecemos”, desabafa o presidente, que confessa a mágoa por as filarmónicas não “terem o reconhecimento que merecem”.

“Acho que somos o parente pobre da cultura. Nós fazemos tanto pela cultura, mas, como somos uma filarmónica, é um passa à frente. Não veem com olhos de ver o que a gente faz”, lamenta.

A banda também tem organizado concertos com vários músicos, de que são exemplo os espetáculos com o trompetista americano Alan Visuti ou com o maestro Paulo Martins.

No calendário está ainda um concerto com Ana Bacalhau, no Teatro Micaelense, em 19 de novembro.

“É verdade que ainda existem as bandas do tipo tradicionais, que são importantíssimas na nossa comunidade, mas nós aqui estamos a tentar dar um passo mais além e fazer um outro tipo de espetáculos”, explica Hélio Soares, maestro e diretor artístico.

O maestro destaca que todos os eventos são organizados não apenas para servir a filarmónica, “mas toda a comunidade musical açoriana”, porque é “preciso trazer pessoas diferenciadas” para colmatar a falta de instituições de educação musical no arquipélago.

“É com esse intercâmbio musical, com esses músicos de alto renome, que conseguimos evoluir. Se nós tivéssemos aqui uma escola profissional, uma universidade de música, havia mais diferenciação. Não havendo, temos de os trazer cá”, justifica.

Hélio Soares enaltece a importância das filarmónicas nos Açores e assume a missão de combater as “ideias preconcebidas” em torno das bandas: “As pessoas olham para a orquestra de sopros, vulgarmente chamada filarmónica, com os olhos mais críticos […]. Por exemplo, o olhar que é dado a uma orquestra de sopros não é o mesmo que é dado a uma orquestra de cordas. É esta tendência que nós tentamos ao pouco ir mudando.”

Ana Colaço, que toca oboé na filarmónica há 15 anos, também sente essa “relutância” e “desconfiança” sempre que convida amigos a assistir a um concerto.

“A ideia que eles têm é de uma banda de coreto que tocava, às vezes, não de forma muito afinada e vão com relutância e desconfiança. Depois de verem os nossos concertos, a maior alegria é dizerem: ‘eu não estava nada à espera disto, foi espetacular’”, conta.

Para Ana, a sua banda é especial porque é enriquecida pelas diferenças de cada um. Coletivamente, todos “trabalham para a excelência”.

“Estamos aqui para fazer algo em conjunto. Quando as coisas correm bem é espetacular. Saímos todos de alma limpa, de alma lavada porque fizemos um trabalho bom. É isso que nos une: é fazer boa música”, atira.

Para uma jurista de profissão, que trabalha na Segurança Social, a motivação para estar na filarmónica é “não ser boa” musicalmente.

“Eu não sou muito boa em termos musicais e isso obriga-me a sair da caixa e a trabalhar. É isso que eu quero passar à minha filha. Com trabalho a gente chega lá. Não vou ser a melhor, mas com trabalho sou muito melhor hoje do que era antes”, comenta.

Na Banda da Relva todos olham para João Medeiros como um dos maiores exemplos: tem 77 anos e há 64 que toca clarinete na filarmónica.

“Eu tenho impressão de que fico mais novo por causa disto”, diz, de sorriso aberto, lembrando que entrou na banda com 13 anos por influência do irmão numa “altura muito diferente”: ainda era o “tempo de Salazar”.

O senhor João, como é carinhosamente chamado, é natural da Relva, tendo sido o amor à freguesia uma das razões para nunca ter abandonado a banda.

“As filarmónicas são o coração de uma freguesia. Agora já não tanto, mas antigamente uma freguesia que não tinha banda era mais triste”, assinala.

Quando casou, conciliar a família com a filarmónica foi “um problema sério”. Olhando para trás, recorda os vários momentos em que colocou a mulher e os filhos em segundo lugar porque a “banda precisava”.

“A minha sogra dizia sempre que eu casei com a música e não foi com a filha dela. Estava sempre fora de casa”, lembra.

Agora, vários anos depois, a família já mudou de opinião relativamente à banda: “Tive uns 20 anos de sacrifício em que estive sozinho contra a minha família. É preciso gostar muito, mas, agora, desde há uns anos para cá, quando digo à minha mulher que vou deixar de tocar, ela não quer que eu deixe. Agora ela quer que eu toque. Ela não queria que eu tocasse e agora quer.”