Se houve alguma autoridade no século XX que pudesse fazer o mais amplo panorama da história da literatura, essa pessoa era Jorge Luís Borges - o erudito que não apenas foi um amante de livros e bibliotecário como incorporava as bibliotecas em rebuscadas confabulações nos seus contos de realismo fantástico.

No caso em questão Borges atendeu a um convite, em 1985, para reunir 100 obras de que gostasse e produzisse textos sobre elas. Não teve tempo para concluir a tarefa, pois veio a morrer um ano depois. Da centena prevista, ficaram 64. Obviamente e, dado o vasto conhecimento de Borges, são obras em número suficiente para um amplo panorama da história da literatura mundial.

A organização não segue nenhum tipo de padrão e começa, em tom autobiográfico, com um belíssimo momento a narrar um encontro com outro dos gigantes das letras - Julio Cortázar. “Nos anos 1940s eu era secretário de redação de uma revista literária, mais ou menos secreta. Certa tarde (...) um rapaz muito alto, cujos traços não consigo recuperar, trouxe-me um manuscrito. Disse-lhe que voltasse dali a dez dias e eu dar-lhe-ia o meu parecer. Voltou dali uma semana. Disse-lhe que o seu conto me agradava e que já tinha sido entregue na tipografia. (...) Passaram-se anos e ele confiou-me, uma noite em Paris, que aquela fora a sua primeira publicação. Honra-me ter sido o seu instrumento”. O conto, aliás, era “Casa Tomada”, do terrífico primeiro livro de Cortázar, “Bestiário”.

No mundo lusitano a escolha do mestre argentino recai, claro, sobre Eça - mas, especificamente, sobre “O Mandarim”. Borges começa por aludir ao facto de a literatura portuguesa da altura não cruzar fronteiras e Eça de Queirós, hoje reconhecido internacionalmente como um dos primeiros prosadores e romancistas da sua época, ter morrido ignorado fora de Portugal. “Como o seu Portugal, que amava com carinho e ironia, Eça de Queirós descobriu e revelou o Oriente”, escreve ele entre uns tantos elogios à obra do autor lusitano.

A paixão de Borges pelo fantástico não excluiu, de forma alguma, luminárias da literatura de género. Se autores como Kafka (“redigiu sórdidos pesadelos em estilo límpido”, diz ele), Robert Louis Stevenson e Edgar Allan Poe passaram aos cânones da alta literatura, tal não é, necessariamente, o caso de Gustav Meyrink (“O Golem”), William Beckford (“Vathek”) e Arthur Menchen (“Os Três Impostores”).

A comparação ilustrativa com estes autores dá-se no texto sobre H.G. Wells, outro notório nome da “ficção de género”, e uma das múltiplas genesis conceptuais da ficção científica. “Ao contrário de Beckford ou de Poe, as narrativas [de Wells] são pesadelos que deliberadamente evitam o estilo fantástico (...) descria de magias e de talismãs (...) a imaginação aceitava o prodigioso, sempre que a raiz fosse científica, não sobrenatural”.

Nomes famosos dos séculos XIX (Dostoiévski, Herman Melville, Oscar Wilde, Flaubert, Henry James, Ibsen) e XX (Kafka, Dino Buzatti, Gide, Conrad, Herman Hesse) obviamente espalham-se pela coleção, mas também há uma vasta oportunidade para autores pouco conhecidos, outros de Leste e alguns de tempos remotos - incluindo os incontornáveis greco-romanos. Um livro saboroso para fãs de livros, enfim.