"E você, de que planeta veio?", perguntou-lhe ironicamente o apresentador do programa, o famoso compositor Ary Barroso, fazendo humor devido à sua sua roupa grande demais, enquanto a plateia ria.

"Do mesmo planeta que o seu", disse Elza. "E qual é?", insistiu Ary, sem saber que a resposta entraria para a história da música popular brasileira. "O planeta Fome", lançou a adolescente, deixando todos estarrecidos.

Poucos minutos depois, boquiaberto ao escutar a jovem cantar "Lama", o apresentador decretava o nascimento de uma estrela.

"Não me esqueço desse diálogo. Não dá pra esquecer", disse Elza Soares, de 79 anos, numa entrevista por telefone à AFP, antes de se apresentar, nesta sexta-feira, no Town Hall de Nova Iorque, com o concerto "A mulher do fim do mundo".

O espetáculo baseia-se no seu último disco, vencedor do prémio de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira nos Grammys Latinos em 2016, um tipo de samba futurista que combina música eletrónica, art-rock e bossa-nova em canções inéditas.

A respeito da fala de Ary Barroso, a diva, cuja voz cativou o Brasil e o mundo, disse que ficou "meio triste. Porque eu era uma menina pobre, mal vestida. Só cantava bem".

Em 1999, a rádio BBC escolheu-a como a "cantora brasileira do milénio".

Após várias operações à coluna, Elza agora canta sentada, mas transborda energia.

Com roupa preta, unhas douradas e peruca afro loira, a cantora concluiu a música "A carne" com um grito gutural, enquanto uma jovem na plateia gritava: Negra! Negra! Negra! Negra! Negra maravilhosa"!

O concerto terminou com gritos de "Fora, Temer!" por parte do público, enquanto alguns exibiam cartazes a pedir "Diretas Já". Com a cortina já fechada, ouviu-se a voz rouca de Elza: "Diretas já! Diretas já! Diretas já"!

Depois de Nova Iorque, entre o fim de maio e julho, ela dará concertos em Barcelona, Porto, Roterdão e Roskilde.

Garrincha, "meu maior amor"

A vida atingiu-a algumas vezes, mas também a transformou num símbolo de resistência e coragem e, nos últimos anos, numa figura de culto.

Aos 12 anos, o seu pai obrigou-a a casar-se e, um ano depois, nasceu o primeiro filho. Teve sete filhos com seu primeiro marido, mas os dois primeiros, prematuros e mal nutridos, morreram muito pequenos. Elza Soares confessa que chegou a roubar comida para os alimentar. Aos 21 anos, já era viúva.

O verdadeiro amor aconteceu com o jogador de futebol Garricha, o "anjo das pernas tortas". Embora tivessem vivido uma relação complicada e violenta, Garrincha "foi meu maior amor, ele [ainda] é", confessa.

A sua lembrança preferida dele? Vê-lo a "jogar futebol. Para mim foi o melhor jogador do Brasil. O maior".

Foram casados 17 anos, mas Garricha, talvez o melhor exemplo da alegria no futebol e herói das conquistas das Copas do Mundo de 1958 e 1962, era alcoólico e morreu de cirrose aos 49 anos.

Com Garrincha, Elza Soares adotou uma menina e teve um filho, apelidado de "Garrinchinha". O rapaz faleceu aos nove anos, num acidente de carro, quando ia visitar o túmulo do seu pai. A mãe de Elza também morreu num acidente de automóvel.

Adepta da maquilhagem dramática, da roupa de couro, de imensas perucas e de saltos altíssimos, Elza Soares nunca se queixou da vida.

"A vida tem sido dura comigo, mas eu vejo outros mundos também com a vida bem dura. Então, acho que a vida é dura para todo o mundo", disse.

Na Copa do Mundo de 1962, no Chile, da qual foi a madrinha, Elza viveu "um encontro ma-ra-vi-lho-so" com o trompetista e cantor de jazz americano Louis Armstrong.

"Eu era muito criança, ele queria me levar para os Estados Unidos [para cantar], mas eu falei que não, porque tinha filhos, e ele não acreditou [...] porque eu era muito, muito novinha", conta.

Um saxofone na garganta

Diz a lenda que Armstrong, impressionado com a sua voz, afirmou que Elza Soares escondia "um saxofone na garganta".

Como a jovem não falava inglês, as piadas davam lugar a cómicos mal-entendidos. Armstrong chamava-a de "daughter" (filha), e ela entendia "doutora". Depois, pediram que se dirigisse a ele como "my father" (meu pai), mas Elza entendeu que pediam que ela dissesse ao músico "me f***".

Desde sempre, a cantora levanta a bandeira da luta contra o racismo, o machismo, a violência doméstica e a homofobia. E hoje também denuncia a situação política e económica no Brasil, que descreve como "caótica".

Sobre o gabinete do impopular governo de Michel Temer, inteiramente masculino, ela diz: "horrível, péssimo, é terrível".

Como gostaria de ser lembrada? "Como gente, como um ser humano normal", reflete, modestamente.

"Vou cantar até ao fim. É o que eu mais gosto de fazer na vida", conclui.