“Icon”, que estará em cena na sexta-feira e no sábado, é uma ópera, uma composição, uma encenação, é “a coincidência de uma sessão de fotos, um ‘set’ de filmagens, um concerto”, que põe num mesmo local – a sala, a plateia, o palco – uma cantora e um ator, músicos e espectadores, envolvidos pela composição e pela projeção de imagens que a acompanha.

A conceção reconhece a influência de Andy Warhol e da Factory, em Nova Iorque, como local de “criação de identidade”, e tem por raiz uma suposta máscara mortuária do século XIX - “L’Inconnue de La Seine” (A Desconhecida do Sena) -, cujo sorriso perturbou a capital francesa, para estabelecer tensão e esbater limites: o ícone transforma-se no que vê, o modelo em fotógrafo, a vítima, em perpetrador.

"Nem há a certeza de ser uma máscara mortuária. Há a possibilidade de ter sido feita por um escultor que inventou a história", dizem o arquiteto Steve Salembier e a fotógrafa Charlotte Bouckaert, a dupla do ateliê belga Bildraum, responsáveis pela encenação e cenografia, numa entrevista reproduzida pela Gulbenkian, no programa de sala.

"Queremos abordar o mito a partir das raízes da nossa cultura visual”, afirmam. Partem assim da origem da fotografia no século XIX, que se transformou num “meio preeminente para comunicar a identidade, em especial pelas redes sociais”, e da máscara mortuária, que “convida a preencher o mistério com uma história”, para pensar “a cultura visual contemporânea”.

As dinâmicas da cultura pop e de artistas como Cindy Sherman e Diane Arbus foram inspiração para os encenadores. Mas o peso maior vai para Andy Warhol, The Velvet Underground e Nico – anagrama de “Icon” – e sobretudo para The Factory, na conceção do espaço cénico.

Para "Icon", a escritora Sabryna Pierre criou duas personagens, L'Inconnue e Mr. Death, a materialização da morte. Mas o libreto é mais um complemento do que um guião para definir a performance, garante a dupla do Atelier Bildraum.

“As palavras aqui não são uma prioridade”, dizem os criadores, que preferem destacar "os atos paralelos de fotografar e ser fotografado", porque "tirar fotografias é uma questão de controlo e de abdicar dele".

Da música de Frederik Neyrinck, dizem Salembier e Bouckaert que "é extremamente bela, quase expressionista”, como se lê na entrevista do programa de sala.

A obra combina a composição serial, com uma multiplicidade de influências, nomeadamente da pop, com origem nos ateliês de preparação da obra. “Fornecemos [ao compositor] êxitos como ‘Femme Fatale’ e ‘Venus in Furs’, dos Velvet Underground, a versão de Patti Smith de ‘When doves cry’, a versão de Nico do ‘The End’, de Jim Morrison. Não para usar literalmente, mas para acrescentar contraste ao romantismo da história”, disse a dupla de encenadores.

O trabalho conjunto do belga Frederik Neyrinck com a escritora francesa Sabryna Pierre remonta à Oficina de Criação de Ópera do Festival de Aix-en-Provence, em 2015, a que se seguiu um ateliê com o dramaturgo britânico Martin Crimp, na companhia belga LOD, na cidade de Gent. O mito de Orfeu era matéria-prima desse encontro, mas foi ele que abriu portas à desconhecida do Sena.

No caso de Pierre e Neyrinck, as palavras foram determinantes, em particular a frase de Louis Aragon: “Ela não é uma mulher, ela é a ausência”. Por isso a identidade da desconhecida não os preocupou na conceção da obra, em conjugação com o Atelier Bildraum. Antes o paradoxo: “Ela conquista a imortalidade através da sua própria morte”, escreveu Pierre, na apresentação feita para a estreia, no festival franco-belga NEXT, em novembro do ano passado.

Concebida para soprano, ator e cinco instrumentos, a palavra falada e o canto misturam-se, justapõem-se ou surgem lado a lado ou à vez, à semelhança das imagens do cenário. As linhas de conjunto e solistas são trabalhadas igualmente pelo conjunto instrumental - clarinete, violino, violoncelo e contrabaixo -, recorrentemente “perturbado” pelo trombone.

“Icon” tem interpretações da soprano Lieselot De Wilde e do ator Tibo Vandenborre, com o agrupamento de câmara Asko Schönberg, sob a direção de Joey Marijs.

A obra é um produção LOD, com a Fundação Calouste Gulbenkian, o agrupamento Asko Schönberg e teatros municipais do Luxemburgo, de Gent e de Snape Maltings, no Reino Unido, com apoio da Rede Europeia de Academias de Ópera (ENOA, na sigla original em inglês) e do programa Europa Criativa, da União Europeia.

As récitas de “Icon”, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, são na sexta-feira e no sábado, às 21:00.