“Aquilo que me interessava mais neste espetáculo era trabalhar sobre a perspetiva da distopia”, de “uma distopia funcional em que tudo acaba por ser hipótese”, um pouco como o romance homónimo, original, do autor norte-americano Jeffrey Eugenides (1960), acrescentou o responsável pela conceção, direção e cenografia da versão para palco de "As Virgens Suicidas", no final de um ensaio para a imprensa.

"Perante a impossibilidade de definir uma causa concreta ou um motivo para as coisas, então vamos aqui especular. Pode ter sido isto, pode ter sido aquilo, se calhar é isto”, mas isto sempre “sob a perspetiva individual”, frisou, John Romão, sobre a escolha deste texto para encenar.

Além do romance, que considera “genial, super intenso e um objeto incrível”, do escritor norte-americano, e de ter visto a adaptação ao cinema que Sofia Coppola dirigiu em 1999, John Romão tomou ainda por referência a novela “Mine-Haha ou A Educação Física das Meninas” (em tradução livre), do autor alemão Frank Wedekind (1864-1918), datado de 1903.

As bases de inspiração para a montagem do espetáculo, com textos de Mickael de Oliveira, surgiram, porém, em momentos diferentes, uma vez que o texto do autor alemão, que é considerado um dos precursores do movimento expressionista, chegou às mãos do encenador já depois de ter começado a investigar a questão do suicídio na adolescência, e de “estas pulsões tão sexuais quanto de morte", poderem "surgir neste período da vida", indicou.

E se, por um lado, “'As Virgens Suicidas' são quase uma espécie de investigação policial e científica, na perspetiva de uns rapazes, para entrar na cabeça das raparigas”, para perceberem "o que as levou àquele gesto transgressivo do suicídio”, ao jeito do romance do autor que em 2003 venceu o Prémio Pulitzer de ficção, por outro lado, o texto de Wedekind narra, na primeira pessoa, a experiência de uma ex-aluna de um sistema educativo muito obsessivo.

Neste texto, é a aluna que conta a sua experiência naquele espaço, em que não há suicídios, mas há comportamentos “transgressores que se podem associar a essa pulsão de morte, que era quase permanente”, acrescentou o encenador.

Neste trabalho inspirado naqueles dois textos, “que utilizam questões atuais, não numa perspetiva de pegar um clássico para o atualizar”, mas “mais num movimento inverso daquele que muitas vezes se faz, até normalmente no teatro”, o encenador admitiu ainda estarem presentes outros temas atuais, como os transtornos mentais, ligados àquela fase de transformação da vida.

“Aqui, também de uma forma irracional, ou inexplicável, tive vontade de pegar nestes textos, nesta temática, e obviamente que, ao entrar nela, começo a perceber que há um eco em relação àquilo que se passa ao nosso redor”, indicou, sublinhando, todavia, que era a perspetiva "da distopia” que lhe interessava trabalhar no espetáculo.

“Uma distopia ficcional" em que, perante “a impossibilidade de definir uma causa concreta ou um motivo para as coisas, vamos especular: pode ter sido isto, pode ter sido aquilo”.

Num cenário cru, onde sobre uma alcatifa cinzenta se encontram uma espécie de pódio, alguns colchões, um carrinho de enfermagem, correntes e pouco mais, John Romão coloca três mulheres – interpretadas por Luísa Cruz, Mariana Tengner Barros e Vera Mantero - que, ao longo da ação, vão assumindo vários papéis.

Professoras, formadoras, enfermeiras, treinadoras, cuidadoras contam-se entre as 'personas' representadas pelas três mulheres que, num espaço de clausura e sem afetos, dominam dez jovens ginastas.

Daquele espaço e daquelas personagens sabe-se apenas que as adultas estão a formar as jovens para um espetáculo, supostamente de fim de ano, e sobre o qual se especula. Um pouco como faziam os rapazes do texto original de Eugenides, sobre as cinco irmãs.

"Fazer o pino”, um dos exercícios mais presentes no espetáculo – e o primeiro requisito pedido pelo encenador para as audições que, ao longo de dois dias, fez a quatro grupos de jovens de várias instituições -, é um dos muitos exercícios a que as jovens vão sendo sujeitas, para testarem os seus limites, no contexto de um regime autoritário e opressivo, característico das distopias.

O suicídio nunca está, porém, representado de forma realista na peça. Está sempre presente, mas de modo figurativo, e quase sempre apenas contado ou sugerido, pelas intervenções das jovens, ao contrário do que acontece nas tragédias, disse o encenador.

Além disso, muitas das vezes o que se vê em cena “não corresponde àquele momento real, mas a uma representação do desejo”, frisou.

Ao longo da peça, aliás, vai-se ouvindo falar do desaparecimento de raparigas sem que, em momento algum, a ele se assista.

Num espetáculo em que até as poucas pulsões eróticas remetem para Thanatos, o suicídio representa-se ora numa dentada dada por uma ginasta na perna de uma das formadoras, ora numa reação de ciúme por esta ter metido a mão na boca da ginasta de quem aquela gostava, ou num beijo na boca trocado entre duas jovens.

Há, pois, que estar atento ao desenrolar da ação e ao evoluir dos movimentos, para se conseguir descortinar as transgressões cometidas pelas jovens.

Com um elenco composto por ginastas com idades entre os 15 e os 19 anos – que não se conheciam entre si –, além das três formadoras, a peça “As Virgens Suicidas” terá quatro representações na Culturgest, com sessões às 21:00, exceto no sábado, às 19:00, numa sessão em Língua Gestual Portuguesa.

Depois da Culturgest, "As Virgens Suicidas" estarão em cena no Teatro de Campo Alegre, no Porto, nos dias 24 e 25.

A peça teve uma pré-estreia em outubro último, na Fábrica da Criatividade, em Castelo Branco, mas, segundo o encenador, a montagem evoluiu e já não corresponde à que será agora representada.

Carlos Lebre, Catarina Bertrand Torres, Céline Martins, Inês Azedo, Inês Costa Graça, Maria Costa, Marta Nunes, Margarida Caldeira, Mariana Cardoso e Mafalda Rey interpretam as jovens ginastas.

A música é de Caterina Barbieri, o desenho de luz, de Rui Monteiro, o de som, de João Neves, e os figurinos, de Carolina Queirós Machado.

No apoio vocal do espetáculo, que tem coreografia coletiva, está Nuno da Rocha, enquanto as danças tradicionais são de Marco Marques.

A produção de "As Virgens Suicidas" é do Coletivo 84, com a Culturgest, o Teatro Municipal do Porto e o Cine-Teatro Avenida, de Castelo Branco, e resultou de residências artísticas realizadas em Lisboa, nos Estúdios Victor Córdon, no CAB - Centro Coreográfico de Lisboa, na Companhia Olga Roriz, na Companhia Clara Andermatt e na ProDança, e n'O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo.