Trata-se da segunda incursão do encenador angolano residente em Portugal no universo de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), depois de, em 1984, ter posto em palco, com a companhia Maizum, a peça “O Paraíso Não Está à Vista”, do dramaturgo, encenador e cineasta alemão, com a qual recebeu o Prémio de Crítica de Melhor Encenação.

A peça passa-se em Munique, nos anos 1970, e os protagonistas da ação são Emmi, uma alemã sexagenária, empregada de limpeza, e Ali, um imigrante marroquino, vinte anos mais novo.

Num bar da capital da Baviera frequentado por imigrantes, Emmi recolhe-se da chuva, encontrando Ali por acaso.

Depois de dançarem, Emmi convida Ali para ir ao seu apartamento, o que acaba por dar origem ao namoro de ambos, uma relação que vai pôr em causa os valores da sociedade alemã da época, garantindo-lhes também uma perseguição constante por todos que os rodeiam, incluindo pelos filhos de Emmi, que rompem com a mãe quando esta os informa da sua paixão.

O foco fundamental da peça, tal como do filme realizado em 1974 por Fassbinder, com o título português “O Medo Come a Alma”, é a relação entre o casal e a pressão a que é sujeita, no "conflito fundamental que, no fundo, acaba por ser integrado num processo de como funciona uma sociedade ou um Estado”, disse Rogério de Carvalho à agência Lusa.

“Um espetáculo de grande interesse social para o grande público”, já que põe em palco conflitos que se mantêm atuais, disse à agência Lusa o encenador Rogério de Carvalho, referindo-se à imigração e à exploração do trabalho.

Ao olharmos para as personagens da peça, ou para o cenário de enclausuramento para que ela nos remete, podemos extrapolar para situações atuais, segundo o encenador, lembrando a discriminação por que passam ainda hoje imigrantes de leste e africanos, em certos países, e para situações vividas “ainda hoje” por trabalhadores das roças na América do Sul, onde são produzidos frutos tropicais vendidos na Europa, acrescentou o encenador.

O enclausuramento do cenário é determinante na desorganização do bem-estar de Emmi e Ali que, a partir do momento em que começam a relacionar-se, são discriminados e postos de parte por todos.

Entre penumbra e despojamento, em palco pontuam três mesas de bar, uma ‘juke box’ e um balcão, que tanto serve de bar como de mercearia onde Emmi se abastecia até começarem a discriminar Ali, com quem acaba por se casar.

As grades da Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, onde a peça fica em cena, acabam então por ganhar significado, num ambiente semelhante a uma prisão onde sobressai o enclausuramento a que os protagonistas são submetidos.

É “certo” que hoje os olhares estão mais concentrados sobre estes problemas - de imigração, exploração, racismo, xenofobia -, até mesmo por parte dos Estados, referiu Rogério de Carvalho, ressalvando, no entanto, que não deixa de haver “um mal-estar” nos países que de acolhimento.

“E nós vemos essa raiva, por exemplo, nos países da Europa”, prosseguiu, citando a propósito os movimentos dos migrantes no Mediterrâneo, que tentam chegar ao continente, e as “muitos mortes” dos que vão ficando pelo caminho.

O filme “O Medo Come a Alma” foi inspirado em Douglas Sirk, expoente do melodrama americano dos anos de 1940-50, e em “O que o Céu Permite”, que concluiu em 1955. Neste filme, a atriz Jane Wyman interpreta uma viúva de classe média alta que reencontra o amor ao se apaixonar pelo seu jardineiro, personagem interpretada por Rock Hudson.

“O Medo Devora a Alma” não é uma transposição do filme do realizador alemão para teatro, embora a forma como a peça é posta em palco, com as suas cenas bem delimitadas, pudesse dar um filme.

O texto da peça posta em cena é o texto total de Fassbinder, sublinhou Rogério de Carvalho, considerando que se trata “de facto, [de] uma peça de teatro muito bem escrita, com um tema muito bem desenvolvido”.

O amor, a velhice, a solidão, o preconceito, a exploração dos imigrantes e as relações sociais entre naturais e estrangeiros são temas presentes em todo o texto de Fassbinder, que tem como fator fundamental “o trabalho do ator do ponto de vista do sentimento”.

Na peça é também visível como o cerco que as restantes personagens impõem a Emmi e Ali contribui para a morte deste que, embora não seja visível no espetáculo, não seja exposta, é deixada como iminente.

Com uma relação conjugal minada pela discriminação de que foram vítimas e mesmo com a aproximação interesseira de amigos que antes os desprezaram, Emmi e Ali não são meras personagens de uma época passada.

"São pessoas. E ainda há muitas pessoas como eles nas sociedades de hoje", concluiu Rogério de Carvalho, em declarações à agência Lusa.

Com tradução de António Sousa Ribeiro, cenografia de José Manuel Castanheira e desenho de luz de Guilherme Frazão, "O Medo Devora a Alma" tem interpretações de Catarina Campos Costa, Cláudio da Silva, David Pereira Bastos, Júlio Mesquita, Laura Barbeiro, Lavínia Moreira, Maria Frade, Miguel Eloy, Pedro Fiuza, São José Correia e Teresa Gafeira.

A peça vai estar em cena até 27 de novembro, na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, com sessões de quinta-feira a sábado, às 21h00, e à quarta-feira e domingo, às 16h00.

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