Com ação a decorrer num albergue, num intervalo das 24 horas da grande odisseia da vida, “Blooming” constitui o primeiro trabalho de Marco Martins com jovens, neste caso jovens institucionalizados, e baseia-se no 16.º capítulo da obra de James Joyce, "Eumeu", no qual o escritor irlandês estabelece um paralelo entre o albergue noturno onde as suas personagens se cruzam com o lugar onde, na obra de Homero, Ulisses se acolhe, no regresso a Ítaca.
A passagem do tempo e a errância da narrativa permitem associar a ideia de percurso à chegada à idade adulta e, com ela, o que significa ficar mais velho, de que é feito esse trajeto, sem deixar de olhar para o envelhecimento da população como crise ou oportunidade, e para a crise geracional, numa “importante ligação” ao que é necessário “preservar ou inventar”.
Por isso, a importância de trabalhar com jovens institucionalizados, neste projeto, para mais quando a noção de “regresso a casa, regresso ao lar” já lhe era inerente, como Marco Martins explicou à agência Lusa no final de um ensaio, numa referência à ideia na base da obra de Joyce e do clássico grego.
O primeiro título da versão para palco era “Uma da manhã”, tal como a hora em que a ação se inicia neste capítulo de "Ulisses", com a chegada das personagens ao albergue. Mas a opção acabou por ir para "Blooming" (florescimento, em tradução livre), vinda do nome da personagem errante de Joyce, Leopold Bloom, acompanhando em simultâneo o despertar dos mais novos no início da encenação, e uma das ideias na base do trabalho - fazer um trajeto, crescer, amadurecer, envelhecer.
"Blooming" é uma peça de “teatro para adultos, mas com crianças”, disse Marco Martins à Lusa, uma tarefa complicada para a montagem da obra, agravada pelos imperativos legais subjacentes a trabalhar com menores institucionalizados.
“E isso era bastante duro”, prosseguiu o encenador. Os atores foram escolhidos a partir de uma “chamada aberta”, da qual foram selecionados “vinte e tal miúdos”, que frequentaram depois várias oficinas.
“Começámos a trabalhar sobre o que é esta ideia do trajeto para casa, todos os dias de casa para a escola, ou do que foi o trajeto de cada um deles quando a segurança social os institucionalizou”, disse Marco Martins.
Foi assim importante “evocar uma série de memórias” com base na figura estilística de 'stream of consciousness' (fluxo de consciência, em tradução livre), que esteve na base do processo do trabalho de improvisação com os mais novos: deixar as suas memórias fluir, sem lhes colocar limites, deixar que se revelasse na sua importância, e fazer depois com que memórias reais se confundissem com memórias elaboradas e ficcionadas.
Os jovens atores, com idades entre os 12 e os 16 anos, para quem o presente já é muito incerto, acabam por se centrar numa ideia de percurso, de trajeto, a que dão mesmo uma representação gráfica, ao desenhá-lo a giz, em cena, em pleno palco.
Surge assim mais uma das perspetivas “muito trabalhadas” no espetáculo, "a improvisação sobre esta ideia do que é envelhecer, do que é ser adulto”, sublinhou Marco Martins. “Muitas das questões que se põem a estas crianças é não conseguirem, muitas vezes, projetar-se no futuro”, até porque estão habituadas a conviver com “falta de modelos”.
No início da peça, há uma sala onde se encontra um adulto, interpretado por Robert Eliot, presença assídua nos trabalhos do realizador e encenador. O cenário fixa-se num espaço com cadeiras voltadas ao contrário, e o ator vai desenhando no chão o que pode ser um trajeto, uma linha a seguir.
Pouco depois, os mais novos entram em cena, emergindo dos beliches onde não parecia haver alguém. Pouco a pouco, despertam, revelam-se, florescem, numa passagem do tempo que traduz à letra o significado de “bloom”.
A função de Robert Eliot - Bob, como Marco Martins o trata - ao longo do espectáculo é a de projeção. Sem pretender que exercesse função de professor ou narrador, à personagem deu Marco Martins a missão de ir despertando os mais novos para a curiosidade do presente e as interrogações de futuro.
Falado em português e inglês e com legendas em ambas as línguas, “Blooming” resulta de um convite a Marco Martins feito pela Arts Over Borders, organismo irlandês de promoção de projetos artísticos transdisciplinares, para que se associasse ao projeto "Ulisses" - uma "odisseia europeia", que congrega projetos em 18 cidades de 16 países, com respostas artísticas a temas sociais e culturais identificados nos 18 capítulos-episódios que compõem o romance de James Joyce.
Marco Martins criou um espectáculo em que se celebra "o comum, o quotidiano, os pensamentos que ocupam a mente humana”, à semelhança da longa divagação de Leopold Bloom.
O encenador português propõe assim uma releitura da obra de Joyce, dando uma nova dimensão à odisseia da sua personagem ao longo de um só dia - o dia 16 de junho de 1904 - através das ruas de Dublin, numa aparentemente interminável viagem de regresso a casa.
Com criação e encenação de Marco Martins, a partir de “Ulisses”, de James Joyce, "Blooming" faz também apelo a criações de Annie Ernaux, B Fachada, Charles Bukowski, Charles Dickens, Djaimilia Pereira de Almeida, Frederick Wiseman, G.K. Chesterton, Georges Didi-Huberman, Kae Tempest, Lucia Berlin, Manuel Vilas, Pablo Neruda, Paul Bloom e W.G. Sebald.
A interpretar “Blooming” estão Robert Eliot, Caetano Machado, Fátima Costa, Halia Silva, Ian Parada e Liria Costa.
A música original é de Miguel Abras, com colagem sonora de Marco Martins; o desenho de luz de Nuno Meira, a sonoplastia e operação de som de Nuno Santos e a assistência de encenação e apoio à dramaturgia é de Rita Quelhas.
Produzida pela Arena Ensemble, a peça 'joga-se' no palco da sala Luis Miguel Cintra, do Teatro S. Luiz, até ao próximo dia 16 - quando passam 120 anos sobre o 'Blooming Day' de Joyce -, com récitas quinta-feira, sábado e segunda-feira às 20h00, e domingo às 17h30.
No âmbito da peça, decorrem duas iniciativas paralelas na segunda-feira, 10 de junho, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, sob o lema "Fora de vista": uma leitura aberta de "Ulisses", e um simpósio sobre a passagem do tempo.
A partir das 13h00 e ao longo de oito horas, no anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian, Marco Martins e o Arena Ensemble promovem a leitura integral da obra do escritor irlandês, numa sessão acompanhada pela exploração de som de Paulo Furtado (The Legendary Tigerman).
A iniciativa convida o público a juntar-se à leitura, através de inscrição (possível na página respetiva do 'site' da Gulbenkian), estando já garantidos nomes de gente das letras e do espectáculo como Albano Jerónimo, Anabela Mota Ribeiro, Ângela Rijo, Beatriz Batarda, Beatriz Cóias, Carlos Fernandes, Carlos Nery, Cláudia Geraldes, Claudia Woolgar, Cristina Gonçalves, Diana Canha, Flávio Catelli, Joana de Verona, João Silvestre, Liam Browne, Lurdes Lopes, Mafalda Teles, Maria José Ledo, Mariana Monteiro, Miguel Abras, Miguel Guilherme, Miguel Loureiro, Nadia Fabrici, Patrícia Vasconcelos, Paulo Pires do Vale, Rafael Morais, Rita Cabaço, Robert Elliot, Romeu Runa, Steven Sander, Susana Menezes, Teresa Coutinho, Vânia Rovisco, Zé Pires e Zia Soares.
O simpósio, que irá abordar questões relacionadas com a passagem do tempo, decorrerá no Auditório 3 da Gulbenkian, a partir das 15:00, com a participação do professor catedrático José Pedro Serra, do Departamento de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, do fotógrafo André Cepeda, da bailarina e coreógrafa Kirenia Martínez e do astrofísico André Moitinho, investigador e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
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