Toda a gente já viu um polvo, vivo ou morto, em alto mar ou no prato banhado em azeite. Mas nem toda a gente viu um polvo que tocasse mil instrumentos e cantasse. Ontem à noite, eu e as cerca de 700 pessoas que lotaram o Teatro Municipal S. Luiz, em Lisboa, fomos os felizes contemplados. David Santos, Noiserv, trouxe à luz o seu novíssimo álbum - Almost Visible Orchestra. Não foi por acaso que os ingressos (grátis) que havia para levantar se esgotaram passadas poucas horas da abertura da bilheteira.

Noiserv abriu com "Mr. Carousel", tema do seu primeiro EP. Ao seu lado, dobrada sobre uma secretária, estava Diana Mascarenhas, entregue ao desenho digital, que era projetado numa tela atrás de ambos. David Santos rapidamente deu com a língua nos dentes, confessando-se nervoso. «A sala é bonita, mas assusta. Mas está tudo bem, o Porto até estava a ganhar e tudo.» Provou que a apresentação de um álbum não tem de ser um momento de pompa e circunstância, desde que a linguagem enunciada seja facilmente traduzível pela audiência. Não poderia ter corrido melhor.

Os temas de Almost Visible Orchestra começaram a surgir, quase sempre intercalados com outros dos discos anteriores. Afinal, como ele próprio disse, este disco só é novo porque outros o antecederam. Não abandonando aquilo que o distingue, adopta neste trabalho um registo mais geométrico, com menos insistência no preechimento instrumental e mais enfoque na estrutura. "Today is the same as yesterday, but yesterday is not today", primeiro single, é a cara dessa ligeira transformação. "I was trying to sleep when everyone woke up", por sua vez, privilegia os vocalizos e o entrosamento das diferentes intensidades da voz. O certo é que os recursos de Noiserv são cada vez mais ilimitados e a sua capacidade para dar vida aos objetos cada vez mais sublime (até uma pistola de videojogos utilizou para adocicar uma música).

Atrelado, de início ao fim, a um pequeno banco, o cantor e músico, que também faz parte do grupo You Can't Win, Charlie Brown, desdobra-se de forma quase fantasmagórica, para conseguir amestrar todo o set que o rodeia. Muitas vezes, antes de introduzir os temas, deambulava em discursos amedrontados e pouco eloquentes, o que lhe valeu um sem-número de gargalhadas da plateia. Precisava de afinar isto e aquilo, de remendar o megafone que deixou de funcionar a meio do concerto, de contar um episódio sobre a música em questão, ou de fazer um agradecimento em post-scriptum. Mas foi a forma simples e alienada como o fez que seduziu o S. Luiz. No fundo, tudo era um resultado da sua timidez em público, nomeadamente as dezenas de vezes que coçou a cabeça enquanto falava.

O seu minimalismo recorda-nos, em parte, os islandeses Sigur Rós. Os títulos das músicas são tudo menos títulos de músicas, porque são tudo menos sucintos. Mas têm piada. E ficam na cabeça. "It's useless to talk about something bad, without something good to compare": monstruoso, mas totalmente acertado. "Don't say hi if you don't have time to a nice goodbye": colossal, mas elucidativo. Trabalhar com loops não é algo que tenha tanta ciência quanto isso. Compôr trechos isolados de melodia também está ao alcance de muitos. Mas, encontrar um ponto onde todos esses trechos se intersectem, sem haver desfasamento na harmonia, exige outro tipo de skills.

Uma encosta esverdeada, um rio sem foz à vista, um arranha-céus donde saltavam pessoas para cima de um balão de ar quente, que era avistado por uma pequena população, em formato formiga e rodeada de muitas árvores, uma composição amovível. Subdividido por seis quadrados, este foi o resultado final do desenho de Diana Mascarenhas. Pegou no rato do computador, arrastou dois ou três quadrados, mudando-os de posição. De queixo caído, lemos "N-O-I-S-E-R-V" escrito nos contornos salientados. Os desenhos, esses, eram simultaneamente primários e complexos. No fundo, em alusão às composições musicais de Noiserv. David Santos ainda nos abandonou duas vezes, mas as ovações de pé convenceram-no a regressar e terminar com «a música mais pequena» que fez até hoje. Álbum apresentado. Mais fãs conquistados.

Fotografias: Rita Sousa Vieira

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