“A peça tem vários temas, desde a lobotomia, que é muito próximo de nós. Tivemos um Prémio Nobel nessa área (…). E tem também uma relação com a lobotomia, porque a própria irmã de Tennessee Williams foi lobotomizada e correu mal, acabou inválida para toda a vida. Há muito de biográfico de Tennessee Williams na peça: a própria questão do centro da peça – Sebastian, e a sua condição de homossexual”, explica Carlos Pimenta, encenador, à margem do ensaio de imprensa.
O encenador revela aos jornalistas que “Bruscamente no Verão Passado”, peça datada de 1958, e adaptada ao cinema pelo realizador Joseph L. Mankiewicz (1959), com argumento de Gore Vidal, tornando-se num dos grandes clássicos de Hollywood, foi traduzida por “encomenda” feita à escritora Ana Luísa Amaral (1956-2022), constituindo o “último trabalho de tradução para teatro” da escritora, que morreu no passado mês de agosto.
Quanto à abordagem das suas “questões centrais”, assume uma perspetiva crítica, numa época em que a “lobotomia” era técnica usada no tratamento de doenças mentais, e em que a homossexualidade era vista como patologia, por uma moral dominante. E vai mais longe, ao abordar a perceção da verdade e do seu oposto, na complexidade construída por diferentes versões.
Na peça, recorda Carlos Pimenta, a homossexualidade de Sebastian vai ser escondida pela mãe, a Sr.ª Venable, uma mulher rica e da alta sociedade, protagonizada pela atriz Emília Silvestre. E é também nessa tentativa de esconder o que não é socialmete aceite que sobressai a outra perspetiva aberta pela peça sobre a verdade, através das “narrativas inventadas” e das “teorias da conspiração”.
"Quem era Sebastian? O que lhe aconteceu, 'bruscamente no verão passado'? Personagem ausente da ação (mas omnipresente, como uma assombração), constrói-se pelas versões contraditórias que dele têm a Sr.ª Venable (a mãe) e Catharine (a prima), e a cuja essência tenta aceder o Dr. Cukrowicz (e nós, espectadores)", escreve a companhia, na apresentação do drama.
Conduzido pelas dúvidas do médico, o espectador é assim envolvido num “mistério” que o vai levar a questionar o conceito de verdade e a tentar descobrir quem está a mentir: se é a mãe de Sebastian, a Sr.ª Venable, ou a prima Catherine, que está com Sebastian no verão em que este foi morto pelos parceiros sexuais e tem de lidar com o que a tia quer ocultar a todo o custo.
Sebastian é “um tipo malévolo”, é um “tipo que maltrata as pessoas”, é “um tipo que abusa dos seres humanos” que, quando está em Cabeça do Lobo, o local onde veio a morrer, diz que está “farto de morenos” e que lhe apetece “loiros”, e parte para a Escandinávia. “É um Deus cruel”, mas a mãe recusa-se a aceitar e faz dele “um mártir”, uma “vítima”, um génio”.
Questionado pelos jornalistas sobre o porquê de encenar agora este clássico de Tennessee Williams, o encenador explica que, para ele, é muito “interessante” o conceito da “verdade” e de como a verdade chega às pessoas, porque na era das redes sociais as mensagens são lançadas e, quando chegam ao destinatário, já foram criticadas, filtradas e dificilmente se trata da mesma mensagem, porque é sujeita ao “crivo”, à opinião”, à “liberdade de expressão”.
Ora esse percurso é algo de “fascinante”, mas coloca problemas como vemos hoje em dia com os “populismos”, explica Carlos Pimenta.
“Há muitos circuitos que constroem narrativas, constroem tudo aquilo que existe para, mesmo com contraditório, veicular determinado tipo de verdades que mais não são narrativas inventadas. Aqui coloca-se o problema relativamente ao facto e ao acontecimento”, observa, recordando por exemplo as teorias da conspiração durante a pandemia da COVID-19 ou as várias verdades da guerra na Ucrânia.
“Quando nós fazemos a peça, fazemo-la a partir do texto de Tennessee Williams e a partir do filme de Mankiewicz, porque houve uma necessidade de trabalhar esta relação entre o que são as imagens do cinema e aquilo que são as imagens do teatro”, explica ainda Carlos Pimenta.
A peça “Bruscamente no Verão Passado” é uma coprodução do Teatro Nacional de São João (TNSJ) com o Ensemble – Sociedade de Atores.
A estreia é no dia 17, pelas 19h00, no TNSJ e fica em cena até dia 27 de novembro.
Pode ser vista quarta-feira, quinta-feira e sábado, às 19h00 e, na sexta-feira, às 21h00. No domingo o horário é às 16h00.
O preço dos bilhetes varia entre os 7,50 euros e 16 euros.
A par desta peça, o TNSJ vai homenagear a investigadora, professora, ensaísta, ficcionista, tradutora e poeta Ana Luísa Amaral.
O tributo decorre no dia 26 de novembro com a leitura encenada de “Diz toda a Verdade mas di-la oblíqua”, que conta com a participação de atores do elenco de “Bruscamente no Verão Passado”.
“Bruscamente no Verão Passado” conta na interpretação com Emília Silvestre, Pedro Mendonça, Bárbara Pais, Clara Nogueira, Catarina Malheiro, Pedro Barros e Marta Bernardes. A música ficou a cargo de Ricardo Pinto e o vídeo de João Pedro Fonseca.
O desenho de luz é assinado por Rui Monteiro e a figuração por Bernardo Monteiro.
A peça é destinada a maiores de 14 anos, é em língua portuguesa, mas legendado em inglês.
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