Ivo Vieira, ‘lighting designer’, começou 2020 “com algum trabalho”, mas tudo terminou em 13 de março: “Tinha o ano inteiro programado, inclusive digressões no Japão. Andei a fazer grandes investimentos para conseguir estes artistas, deu resultados, mas não se concretizaram. No início falou-se de adiamentos, mas a partir de certo ponto cancelou-se tudo”, recordou em declarações à Lusa.
Aos 36 anos, vive sozinho num T0 em Lisboa, pelo qual paga 400 euros de renda. Neste último ano as poupanças que tinha, “poucas, foram todas”. “Nunca sei responder como é que vou pagar a renda do próximo mês. É uma aflição, nunca me deito na almofada descansado”, partilhou.
A renda acaba por ser paga graças aos “biscates” que vai fazendo de “pequenos trabalhos de eletricidade ou de pintura” a pedido de amigos.
Tentou os apoios da Segurança Social para trabalhadores independentes, mas não teve direito a nada. Com a chegada da pandemia, que lhe tirou o trabalho, deixou de ter como pagar as dívidas à Segurança Social e às Finanças, e isso “limitou a possibilidade de pedir apoios”.
Neste momento, o desejo de Ivo é “ultrapassar isto tudo” sem ter de vender o equipamento para pagar a renda: “é como ser condutor de Uber e vender o carro, depois fico sem ferramenta para trabalhar”.
No entanto, essa “é uma realidade que está a aproximar-se cada vez mais”: “Já tive que vender licenças de software que tinha comprado e algum material”. Se esse dia chegar, será “o fim da linha”.
Para alguém que nos últimos anos apostou na eletrónica e no ‘clubbing’, as perspetivas de regresso à ‘normalidade’ não são animadoras. A “perspetiva realista” de amigos de Ivo que estão na “capital mundial da cena eletrónica”, Berlim, é que a ‘normalidade’ chega no inverno de 2022.
“Espero que estejam errados. Eu não me aguento até lá, e não sei se as casas [clubes e discotecas] se vão aguentar até lá”, disse.
Apesar dessa perspetiva, a agenda de Ivo Vieira para este ano “estava a ficar, surpreendentemente, bastante preenchida, até que vieram as novas restrições e foi tudo por água abaixo de novo”. “As marcações que tenho estão todas com um ponto de interrogação”, contou.
Por outro lado, a agenda de João Ferreira, técnico de som, não tem “nada marcado”. “Provavelmente nem vou ter tão depressa, não me parece que aconteçam nem grandes nem pequenas coisas antes de agosto, talvez. Se calhar vai ser a mesma coisa do ano passado, é fazer o Avante e depois a partir dali ter esperança que as coisas abram mais um bocadinho”, afirmou à Lusa.
Com 44 anos e a trabalhar na área desde os 18, João teve em 2020 um ano atípico. “Até fevereiro, 2020 estava a revelar-se, surpreendentemente, um ano que ia ser favorável, estava cheio de trabalho, que não é hábito. Fiz uma coisa para a televisão em 01 de março e foi o último trabalho. Depois fiquei com o ano todo cancelado”, recordou.
No entanto, ainda foi fazendo “coisas pontuais”. Num ano normal em julho, com os festivais, a média de dias de trabalho de João ronda os 20/23. No ano passado, trabalhou sete: “Tendo em conta a pandemia, fartei-me de trabalhar”.
Os anos que leva de trabalhador independente fizeram com que tivesse começado “a fazer um pé de meia”, e foi-se “aguentando com isso”.
“Também tive algum apoio da Segurança Social, uma coisa pouca, mas que dá para ir entrando alguma coisa. Agora já não sou sequer elegível para um novo apoio”, partilhou.
O facto de ser casado ajuda, por não ser “o único a ganhar em casa”, mas mesmo assim “tem de se ir gerindo” os gastos.
“Tenho um custo de vida significativo, vivo em Lisboa onde a renda é mais do que o que a Segurança Social me pagou. Não podia estar dependente do pé de meia e de apoios e tive de arranjar outra coisa, e é uma chatice porque nunca tive outra carreira sem ser esta”, lamentou.
Atualmente, é “monitor num centro de inserção para pessoas com adições e dificuldade de se inserirem na sociedade”, mas é temporário.
“Quando voltar a poder trabalhar, continuo a fazer o que sempre fiz, mas para já tenho que estar ali”, referiu.
Nuno Cruz, produtor cultural e técnico de som, ainda não procurou outro trabalho, mas tem tentado “explorar outras coisas, como a edição de ‘podcasts’ e a gravação de música”.
“Não é a minha especialidade, mas tendo em conta que não há outras possibilidades tenho tentado ir por aqui”, contou.
2020 foi para Nuno “praticamente um ano de férias”. “Trabalho muito na estrada e tudo o que fazia foi cancelado. Novembro até foi um mês muito forte, porque tive muita coisa que tinha sido adiada dos meses anteriores, mas logo a seguir voltou a ser tudo cancelado”, recordou.
Aos 29 anos, tem “a grande sorte” de morar numa casa que pertence aos pais, não tendo por isso que pagar renda. As outras despesas foram sendo pagas “à base da conta poupança e de alguns trabalhos”. “Nesta área acontece muito não recebermos logo na altura e sim aos bocadinhos nos meses seguintes. Nos primeiros quatro, cinco meses de 2020 ainda fui recebendo de trabalhos anteriores”, lembrou.
Do Estado, se retirar o valor que teve de continuar a pagar de Segurança Social para poder receber o apoio, tem ideia que recebeu “à volta de 50/60 euros num mês, depois subiu para cento e poucos e depois manteve-se nos 200”.
Em relação a este ano, quer estar “bastante positivo”. “Quero acreditar que vai ser como o final de setembro, novembro, em que voltou a haver muita coisa. Mas, para já, os únicos trabalhos que tenho marcado são dos ‘podcasts’. Outros projetos vão sendo marcados e mais próximo cancelados”, disse.
Há dez anos a trabalhar na área, confessa que já pensa que tem de se adaptar, porque “tão depressa as coisas não vão voltar ao que eram”.
“O que penso nas alturas mais críticas é sempre ‘bem, se calhar está na altura de me inscrever para ir distribuir umas pizzas’, mas na perspetiva de estar apenas uns meses enquanto isto não melhorar. Deixar a área só mesmo se não tiver outra opção”, partilhou.
Também Ricardo Dias, de 38 anos, que se desdobra entre funções de ‘road manager’, ‘tour manager’, ‘roadie’ e agente, decidiu tentar outra coisa, mas salienta que será apenas temporário.
“Em janeiro enviei alguns currículos, porque continuar sem ‘income’ é impossível, se me telefonarem a dizer que se precisam de alguém para um armazém, eu vou trabalhar”, disse, lembrando que conta já com 21 anos de trabalho na área dos espetáculos.
Ricardo acredita que no segundo semestre será possível “remarcar coisas”, mas, para já, a palavra que mais aparece na sua agenda é “adiado”.
Tal como para tantos outros ‘invisíveis’ da Cultura, 2020 “foi basicamente um ano inteiro de trabalho que se perdeu, centenas de espetáculos”.
“Quando houve aquela reabertura dos teatros [a partir de 01 de junho] houve algumas coisas. Num universo de centenas de espetáculos, se calhar aconteceram 3%”, calculou.
Ricardo fala da sorte que teve no final do ano, graças a um convite para trabalhar com o músico David Santos (Noiserv). “Fiz a digressão de apresentação do disco, que foram dez espetáculos”, recordou.
Este ano, diz, “parece ser uma fotocópia de 2020”. “Não acredito que as restrições sejam levantadas ao ponto de se poder ter grandes multidões, e todas as remarcações que havia do ano passado para os primeiros quatro meses deste ano já estão a ser passadas para mais à frente”, contou.
Ricardo alerta que “isto vai criar um problema gigante, porque os teatros não vão poder acolher novos espetáculos em 2021, porque estão a remarcar os de 2020”. “O que significa que há equipas e artistas que não trabalharam em 2020 e não vão trabalhar em 2021, porque não têm espaço”, disse, recordando que um artista “dá a cara por dezenas de pessoas que estão atrás dele”.
“Agências, ‘managers’, ‘roadies’, técnicos de som, luz, vídeo, ‘runners’. Existe uma série de gente ligada ao meio dos espetáculos de música. Toda uma área de trabalho que foi aniquilada, deixou de existir [no último ano]”, afirmou.
Desde que a pandemia chegou a Portugal, do Estado conseguiu apenas um apoio. “Tive grandes lutas com a Segurança Social e ausência de respostas. Entretanto consegui um apoio de 438 euros e candidatei-me agora novamente”, disse.
Num ano “a faturar muito pouco” e com “as despesas iguais”, o facto de ser casado com alguém que tem “um trabalho fixo” tem ajudado: “a minha mulher tem sido um bocado a âncora de casa”.
Também Gonçalo Kotowicz, produtor na promotora Incubadora de Artes e músico, salienta que “não fosse estar casado com alguém que tem um emprego seguro” e estariam - ele, a mulher e os três filhos - “muito pior”.
“Não estou na situação, como muita gente, de não ter dinheiro para pagar renda, ou a precisar de ajuda do trabalho fantástico da União Audiovisual, mas já estive muito melhor. Há um ano estava muito melhor”, afirmou.
A Incubadora de Artes é uma empresa com 15 anos, “que já passou várias crises e tem-se aguentado”, em média promove cerca de 60 a 70 espetáculos por ano, em 2020 conseguiu que acontecesse quatro, em fevereiro.
“E foram quatro porque foram vários do mesmo artista, a Glenn Miller Orchestra. Depois só tivemos mais um em novembro e que não correu bem em termos financeiros. Apesar de ter sido um artista, o Anthony Strong, com quem já trabalhamos há uns anos e que tem sempre boas casas, tínhamos 200 e poucas pessoas no Grande Auditório do CCB, que leva 1.300”, contou, referindo que além das reduções de lotação entra também na equação “a confiança do consumidor”.
A promotora está “sem trabalhar, completamente parada, constantemente a adiar concertos”. “Quando temos medidas anunciadas de 15 em 15 dias é difícil, não dá para fazer um planeamento. E no nosso caso ainda se torna mais complicado porque trabalhamos quase exclusivamente com artistas estrangeiros. Estamos reféns do resto das ‘tournées’ europeias, dos corredores aéreos, de todas essas situações”, referiu, lamentando que a empresa não sabe “quando vai voltar à atividade normal nem como”.
A promotora concorreu aos apoios anunciados pelo Governo mal foi possível fazê-lo: “Assim que percebemos o que ia acontecer, e começámos a receber ‘emails’ dos managers europeus e internacionais a dizer que as ‘tournées’ estavam canceladas e que não iria haver nada, não precisámos de fazer grandes contas para perceber que a nossa faturação ia cair muito abaixo do mínimo que tinha sido definido para se pedir apoios. Nós tivemos quebras de faturação na ordem dos 90%”.
No entanto, “demorou imenso tempo” até receberam alguma coisa. “E isso só nos pode deixar revoltados. No final de maio ou junho é que recebemos finalmente o apoio e entretanto já tínhamos estado três meses sem fazer nada”, lamentou.
Além do ordenado que recebe da promotora, Gonçalo conta com um rendimento extra “que vem da música e que [há um ano] não existe”.
A banda que integra, The Quartet of Woah!, estava no meio da gravação do terceiro álbum “quando isto tudo rebentou”.
“Tínhamos o verão de 2020 bastante preenchido, com montes de espetáculos, todos cancelados”, contou. No final do ano passado ainda esteve planeado tocarem, mas por serem sobretudo uma banda de pequenos clubes, não compensava.
“O clube só tinha autorização para abrir para 20 pessoas e acabou por deixar passar. Por um lado estamos sedentos de palco, mas também sabemos que não é com 20 pessoas que se conseguem cobrir custos. Neste universo está de facto muito complicado”, disse.
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