"Um Tambor Diferente", do escritor afro-americano William Melvin Kelley, publicado em 1962, chega agora a Portugal, trazendo um novo olhar sobre a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, uma parábola escrita por um negro e narrada por brancos.
O romance de estreia de William Melvin Kelley, publicado dois anos depois de “Mataram a Cotovia”, de Harper Lee, retrata igualmente as questões raciais vividas nos primórdios do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e catapultou o seu então jovem autor de 23 anos - um afro-americano membro do Movimento das Artes Negras -, para a galeria dos clássicos americanos.
Entretanto o livro caiu no esquecimento, até terem sido feitas algumas reedições em 2018, no ano a seguir à morte do escritor, que restabeleceram o interesse pelo trabalho ficcional de Melvin Kelley, e que levaram a revista The New Yorker a classificá-lo como o “gigante perdido da literatura norte-americana”.
Quase 60 anos depois da publicação original, a Quetzal edita-o pela primeira vez em Portugal, sendo também a primeira obra da autoria do escritor a chegar ao mercado livreiro nacional.
Traduzido e prefaciado por Salvato Teles de Menezes, a história irradia de um acontecimento central: num dia de junho de 1957, um agricultor negro, Tucker Caliban, descendente de um mítico escravo rebelde, conhecido como “o Africano”, salga as suas terras, abate o cavalo e a vaca, incendeia a própria casa e parte para o norte, com a mulher grávida e o filho pequeno.
Com este gesto dá origem a um inesperado êxodo de toda a população negra do Estado, um episódio de desobediência não violenta a que assiste um grupo de brancos, estupefactos e impotentes, que se questionam sobre que sentido dar a esta partida espontânea e quais as consequências para a cidade, subitamente desprovida de parte significativa dos habitantes.
A história é contada precisamente pelos que restam, os brancos, quase todos pertencentes à família Wilson, um clã de proprietários de escravos no passado, cujo último herdeiro, David Wilson, vendeu uma parcela da antiga plantação ao criado Tucker Caliban, ou seja, as terras em que os pais e avós deste viveram em escravidão.
“Aqui reside, desde logo, um dos aspetos fundamentais que distinguem este romance de outros com o mesmo objetivo: embora escrito por um negro, quem tem voz na narração são os brancos, não permitindo, assim, acusações primárias relativamente a qualquer tentativa de conduzir a leitura para a potencial simplificação das complexas e equívocas relações que se manifestam entre negros e brancos no sul dos Estados Unidos”, explica Salvato Teles de Menezes.
Ou seja, não há “qualquer tipo de visão redutora ou tendenciosa, a não ser que o escritor tivesse imposto aos brancos, coisa que não faz, um discurso ideológico e linguístico que não fosse o deles”, especifica o filólogo.
Deste modo, permite conhecer a mentalidade branca sul-americana nos primórdios do movimento dos direitos civis: a resistência à mudança, a incompreensão e a raiva.
Ao longo do romance, sucedem-se vários pontos de vista, que são dados ao leitor pelos membros da família Wilson, e que são reveladores das relações algo paternalistas que mantêm com os criados negros, sem nunca apresentar explicações subjetivas, apenas através da descrição de factos concretos.
Vozes brancas distintas – femininas ou masculinas, adultas ou infantis, liberais, radicais ou conservadoras – desenham os acontecimentos, delimitam o mistério, mas nunca o desvendam totalmente.
“É fascinante poder ler entrelinhas, poder estabelecer conexões ricas e subtis entre personagens, compreender as suas motivações e renúncias, os seus limites. Há muito para adivinhar, deduzir, frases ou parágrafos às vezes sibilinos e sempre carregados de sentido”, afirma o tradutor, no prefácio.
Sobre este romance, escreveu o monge trapista Thomas Merton (1915–1968): “é mais do que um brilhante primeiro romance de um jovem escritor negro. Trata-se de uma parábola que estuda algumas das profundas implicações espirituais da luta dos negros por direitos civis completos e por um estatuto humano integral no mundo de hoje”.
“É, mais do que uma história do protesto negro, um mito carregado de extraordinária força criativa que lança luz sobre o significado providencial da tragédia na qual, saibamos ou não, compreendamos ou não, gostemos ou não, estamos todos envolvidos”, considerou Thomas Merton, num ensaio de 1985, intitulado “William Melvin Kelley – A Different Drummer”.
Outra peculiaridade deste romance destacada por Teles de Menezes é a opção de situar os acontecimentos num estado imaginário do sul dos Estados Unidos, algures entre o Alabama, o Tennessee, o Golfo do México e o Mississípi, aquilo a que geralmente se chama “Deep South” (sul profundo), recorrendo, assim, ao mesmo tipo de programa ficcional definido por William Faulkner com o seu condado ficcional de Yoknapatawpha, usado em praticamente todos os romances e histórias.
“‘Um Tambor Diferente’ poderá ser considerado, por muito que isso doa aos que acreditam que nos Estados Unidos a literatura não tem nada que ver com ideologia, um romance declaradamente político, sem que tenha nada de panfletário”, considera Teles de Menezes.
Uma história que “continua oportuna e urgente”, descreveu o jornal The Guardian, que considera “uma dádiva para a literatura” poder redescobri-la sessenta anos depois.
“Fábula política”, como o considerou a Rolling Stone, com um “tema assustadoramente atual”, na ótica da MDR Kultur, “Um Tambor Diferente” foi classificado como “brilhante” e “uma obra-prima” pela The New Yorker e pela Public Books.
Nascido em Nova Iorque, em 1937, William Melvin Kelley foi um estudante notável em Harvard, professor universitário, ensaísta ocasional e ficcionista, conhecido pelas suas explorações satíricas das relações rácicas na América.
Quando publicou "Um Tambor Diferente", a crítica celebrou-o, comparando-o a William Faulkner e James Baldwin.
A expressão que inspirou o título vem de "Walden ou a Vida nos Bosques", obra de caráter autobiográfico de Henry David Thoreau.
Membro do ‘Black Arts Movement’, entrou oficialmente para o Oxford English Dictionary, em 2014, por ter cunhado o termo político ‘woke’ (em português, algo como “acordado”, “desperto”).
Romancista e contista, é autor de “Dunfords Travels Everywheres”, romance experimental, de “Dancers on the Shore”, recolha de contos publicados em revistas literárias, “A drop of patience”, romance sobre um músico de jazz cego, e “dem”, sátira sobre as relações entre brancos e negros.
Depois do assassinato de Martin Luther King, mudou-se para França, tendo vivido ainda em Itália e na Jamaica.
Em 2008, recebeu o Prémio Anisfield-Wolf Book Award for Lifetime Achievement. Morreu em fevereiro de 2017, em Nova Iorque.
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