Realizada por Yariv Mozer, que a criou com Kobi Sitt, a minissérie de três episódios captou atenções a partir do momento da estreia, no festival DocAviv do ano passado, em Israel, por finalmente pôr a descoberto a voz de Adolf Eichmann, considerado um dos principais organizadores da “Solução final” que matou seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, gravado em conversa com o jornalista nazi neerlandês Willem Sassen, quando ambos viviam na Argentina, no final da década de 1950, num pós-guerra que viu um sem-número de nazis escapar à justiça.

Nas gravações, que registaram múltiplas conversas cujas transcrições – feitas por Sassen e revistas pelo próprio Eichmann - ocuparam milhares de páginas, é possível ouvir o homem que coordenou a logística do Holocausto reconhecer e gabar-se dos seus feitos: “Fizemos o que pudemos. Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, teríamos cumprido a nossa missão. Eu sei que o que estou a dizer é duro e que serei condenado por isso, mas não consigo dizê-lo de outra forma. É a verdade. Por que o deveria negar? Nada me irrita mais do que quando um tipo depois nega as coisas que realizou”.

As vozes de Eichmann e de Sassen surgem na gravação original, sobre recriações das conversas feitas por atores, uma escolha que o realizador Yariv Mozer atribuiu, em declarações à Lusa, principalmente à necessidade de conseguir chegar a um público mais jovem.

“Quis que os públicos jovens fossem capazes de identificar, compreender e sentir uma relação com este material. Podes ouvir as gravações, podes entendê-las, mas quis que os públicos mais jovens de facto compreendessem o contexto. Isto aconteceu na vida diária de uma família, em Buenos Aires”, lembrou Mozer, recordando o momento em que Eichmann, a meio de descrições sobre os seus atos, é interrompido pela mulher de Sassen, que lamenta não ter encontrado os cigarros que o alemão fumava.

Depois de anos na Argentina, Eichmann é finalmente capturado pelos serviços secretos israelitas, em 1960, e levado para Israel, onde é julgado, num dos processos mais mediáticos e célebres da história, em particular devido ao trabalho da filósofa Hannah Arendt, que cobriu o julgamento para a revista The New Yorker e o compilou no livro “Eichmann em Jerusalém”, recorrendo ao conceito da “banalidade do mal”.

“Nem me importava com os judeus que enviei para Auschwitz. Não me interessava se estavam vivos ou se já estavam mortos. Havia uma ordem do Führer do Reich que dizia: ‘Todos os judeus capazes de trabalhar devem ser submetidos ao processo de trabalho! Os que estejam incapazes de trabalhar têm de ser submetidos à solução final.’ Ponto final.”

Questionado por Sassen sobre se isso significava a “eliminação física", antecipando assim questões que lhe seriam colocadas durante o julgamento em Israel, Eichmann não deixou dúvidas: “Se foi isso que eu disse, sim. Evidentemente”. Há uma pausa na gravação, antes de se ouvir uma voz a dizer, repetidamente “Não podemos fazer isto”, seguindo-se a paragem do registo.

Eichmann “orgulha-se do trabalho da sua vida”, mas o trabalho da sua vida consistiu no assassinato em massa de judeus, sublinhou no documentário a historiadora Bettina Stangneth, peça fulcral para que a equipa responsável pelo filme conseguisse chegar às gravações, depositadas em arquivos alemães e nunca antes acedidas para um trabalho como este.

“A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann” recorre a entrevistas com vários historiadores para contextualizar e analisar o momento do julgamento, o seu impacto em Israel e nas relações com outros países, assim como o caminho percorrido até àquele momento, que culminou com a execução do nazi em 1962.

As imagens do julgamento e os registos visuais dos crimes nazis são coloridos, recorrendo à tecnologia disponível hoje, uma opção que Yariv Mozer também justifica com a necessidade de chegar a mais públicos.

“Alguém me disse que não seria moral pegar em imagens a preto e branco do Holocausto e colori-las. Eu respondi que bem pelo contrário, o Holocausto foi a cores. É tempo, especialmente com a tecnologia de alto nível que temos hoje, de pegar nessas imagens e as mostrar às novas gerações, que isto aconteceu numa realidade como aquela em que vivemos hoje, a cores”, afirmou Mozer à Lusa, realçando que não foi “num planeta a preto e branco”.

Mozer sublinhou que, “mesmo em Israel, os públicos mais jovens não sabem muito sobre o Holocausto”. “Sabem do Holocausto, mas não têm conhecimentos sobre. Como aconteceu? Quem foram as pessoas? Quais os mecanismos?”.

O Holocausto foi “o genocídio sem precedentes, total e sistemático, levado a cabo pela Alemanha Nazi e pelos seus colaboradores, com o objetivo de aniquilar o povo judeu”, como se pode ler no resumo feito pelo Centro de Memória do Holocausto Yad Vashem, sediado em Jerusalém.

“Entre 1933 e 1941, a Alemanha Nazi seguiu uma política de desapropriação dos judeus dos seus direitos e propriedades, seguido pela rotulação e concentração da população judaica. Esta política ganhou amplo apoio na Alemanha e em muita da Europa ocupada. Em 1941, depois da invasão da União Soviética, os nazis e os seus colaboradores lançaram o assassinato em massa dos judeus. Até 1945, quase seis milhões de judeus haviam sido mortos”, acrescenta o mesmo texto.

A série, coproduzida pela norte-americana MGM, contou com o apoio da televisão pública israelita, Kan, que surgiu como um alvo para o novo governo de Benjamin Netanyahu.

Questionado sobre as intenções do novo governo israelita de fechar a Kan, Yariv Mozer disse que nem consegue dormir à noite devido às ameaças sobre a estação.

“Não compreendo porque é que um governo que acaba de se estabelecer em Israel, onde há tantas coisas para resolver, [decide que] a primeira – ou talvez a segunda – maior coisa que tem de fazer, e fazer rapidamente, é demolir a televisão pública. Foi criada pelo mesmo partido do governo, o Likud, e agora, apenas seis ou sete anos depois, querem demoli-la. Porquê? Deus sabe porquê. Por que é que haviam de demolir um tamanho símbolo de qualidade, um símbolo de liberdade de expressão e criação? Porquê?”, disse Mozer, que se mostrou “triste e muito envergonhado de ser israelita quando isto é o que querem fazer”.

“A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann” estreia-se em Portugal no TVCine Edition, na sexta-feira, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, às 22:00, sendo exibidos os três episódios de seguida.