Quem tenha do Festival de Cannes a imagem de um evento de dimensões gigantescas, tapetes vermelhos quilométricos, ruas largas e estrelas a metro, poderá ficar um pouco desapontado no primeiro momento em que chega ao Palais des Festivals, o centro nevrálgico do certame cannoise. O edifício em si é uma estrutura grande e de linhas rectas, compreensivelmente alcunhado de «bunker» pelos participantes do acontecimento praticamente desde que foi construído em 1983. À sua frente, longe da vasta passadeira das estrelas do imaginário colectivo, que culminaria nos míticos degraus de entrada do recinto, há uma curta estrada temporariamente vedada ao trânsito, onde os locais se colocam com cadeirinhas e escadotes para vislumbrar as vedetas. O primeiro tapete que se vê, na parte da frente do edifício, faz cair o coração aos pés de qualquer cinéfilo: uma passadeira com uns míseros cinco metros a antecipar uma escadaria de 24 degraus.

Contornando o «bunker», uma nova luz se acende: o verdadeiro tapete é lá atrás, bem maior que o primeiro mas mesmo assim longe do que as câmaras fotográficas e de televisão pareciam sempre sugerir. E os degraus? Continuam a ser 24, separados em tranches de 12. Impressiona, mas não tem exactamente a majestosidade esperada.

De qualquer forma, o visitante que aterra pela primeira vez no Festival desde logo se apercebe de uma coisa: a fruição do evento varia muito de acordo com o estatuto com que cá se chega. A maior parte das pessoas que se acotovelam à volta do «bunker» para verem as estrelas, por exemplo, são fãs ou turistas, sem qualquer tipo de acesso privilegiado, o que quer dizer que dificilmente farão algo mais que coleccionar autógrafos, e com bastante dificuldade. O próprio acesso ao Palais des Festivals está completamente vedado a quem não seja um profissional acreditado: actor, produtor, jornalista, comprador ou realizador, por exemplo.

Por outro lado, para quem esteja no topo da cadeia alimentar do evento, o céu é o limite, com acesso ilimitado às festas mais exclusivas e glamourosas, e promessas de projectos futuros com alguns dos maiores nomes da Sétima Arte.

O que quer dizer que a principal razão de ser de um festival de cinema, a de dar a ver filmes, passa completamente ao lado dos locais. De facto, só com muita sorte, algum fã que não seja profissional consegue bilhete para entrar numa sala e ver um filme. O que não quer dizer que não o tentem: à saída do Palais o que não falta é gente de todas as idades com um papel ao peito a pedir bilhetes para as projecções, como se estivessem à espera de um desconhecido num aeroporto. E à noite a imagem torna-se mais caricata uma vez que esses fãs trajam smoking ou vestido de gala, critério essencial para entrar nas projecções de final do dia.

Já para os profissionais, com diferentes graus e acessibilidade, a experiência é completamente diferente. A escala gigantesca do festival percebe-se logo pela imensa dimensão do Palais, com inúmeras salas de projecção, imprensa e conferência, enxameadas por milhares de profissionais provenientes de todo o planeta. E a partir daí sucedem-se dezenas e dezenas de sessões, desde clássicos restaurados a filmes de jovens cineastas passando pelo prato forte do certame, as mais recentes propostas dos maiores realizadores do mundo. E como os próprios estão sempre presentes para os apresentar e falar com a imprensa, o interesse triplica.

Mesmo para os profissionais, a acessibilidade a tudo está condicionada pelas cores dos respectivos cartões de acreditação, com muitas das sessões a terem diferentes vias de acesso à sala consoante a categoria de cada visitante.

Atrás do Palais, está a enorme secção de mercado, que se estende em tendas à beira rio divididas por países, antes de chegar aos imensos iates que povoam as baías de Cannes. Aqui tudo se compra e vende, numa área menos interessante para os fãs mas cuja dimensão justifica também que Cannes seja considerado o mais importante festival do mundo, aquele onde tudo se decide e onde todo o ano seguinte se programa.

De noite, ainda mais restritas são as diversas festas privadas a que todos querem aceder. Aqui o luxo é a palavra de ordem, as roupas de gala são uma exigência e os convites são cobiçados como ouro. Em Cannes, dorme-se pouco durante esta semana e meia, mas tendo em conta que o centro do cinema mundial está literalmente aqui durante este período, esse é um pequeno preço a pagar.

Inês Mendes e Luís Salvado (em Cannes)