Após a controvérsia do anúncio de publicação, o recuo da Hachette sobre a autobiografia de Woody Allen também foi criticado.

Na sexta-feira (6), o grupo editorial, pressionado por protestos dos funcionários, recuou e anunciou não publicaria a autobiografia “Apropos of Nothing” (“A Propósito de nada”, em tradução livre) do realizador norte-americano, acusado de abuso sexual, prevista para sair no início de abril, nos Estados Unidos.

Woody Allen: editora cancela lançamento da autobiografia após protestos
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A juntar aos protestos dos funcionários da própria editora, que fizeram greve em Nova Iorque e Boston, como forma de se insurgirem contra os planos, contava-se também a reação do filho do cineasta, o jornalista Ronan Farrow, que se opôs à publicação das memórias do pai pelo mesmo grupo editorial que publicou em 2019 o seu livro “Catch and Kill”, sobre uma investigação a casos de abusos sexuais, em que se inclui o caso de Harvey Weinstein, e à forma como os poderosos escapam à justiça.

Em 2014, Dylan Farrow, filha adotiva do casal, voltou a acusar Woody Allen de ter abusado sexualmente dela em 1992, quando tinha apenas sete anos, uma acusação que reiterou em 2018, mas que o realizador sempre desmentiu e que nunca foi comprovada pelas duas investigações em separado que se fizeram ao caso.

Nas redes sociais, Dylan Farrow declarou que a decisão de publicar o livro tinha sido "profundamente perturbadora” para si e “uma completa traição” ao irmão.

Contudo, a decisão do grupo editorial de voltar atrás na decisão de publicar a autobiografia do realizador de “Annie Hall” acabou por se revelar também controversa, com algumas vozes a levantarem-se contra esta cedência a pressões e a falarem de censura.

Num artigo publicado no jornal The Guardian, a ex-diretora do PEN club inglês e ex-editora do Index on Censorship, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é promover a liberdade de expressão, Jo Glanville, deixou claro que “este é o comportamento de censores, não de editores”, e acusa a Hachette de ter sucumbido à ofensa moral, ao rejeitar publicar o livro.

“Isto é preocupante para escritores e leitores. Os funcionários da Hachette, que protestaram na semana passada, claramente pensavam que estavam a fazer o que era moralmente correto - protestar contra a publicação de um livro escrito por um homem que foi acusado de abusar da sua própria filha. Mas, como já foi repetido várias vezes, Woody Allen foi investigado por duas vezes e nunca foi acusado. Apesar de Dylan e Ronan acusarem Woody Allen, ele não foi considerado culpado. Nada foi provado. De facto, não há uma razão aceitável para não publicar o livro de Woody Allen”, escreveu.

Jo Glanville sublinhou ainda que desde criança que vê os filmes de Woody Allen e gostaria de ler o livro: “Gostaria de ler o seu livro, mesmo que fosse considerado culpado, porque estou interessada no homem, no seu trabalho e na sua vida. Não faço verificações da pureza moral e do registo criminal de um escritor antes de o ler. Teria de retirar das minhas estantes de livros muitos dos escritores que mais amo, se fosse começar a aplicar os princípios da equipa da Hachette: T.S. Eliot e Roald Dahl, para começar, como antissemitas. De facto, a maior parte do cânone inglês teria de ser rejeitado, nessa base”, acrescentou.

Também o escritor Stephen King já veio criticar a Hachette e manifestar “desconforto” com a decisão da editora norte-americana de cancelar a publicação do livro.

“A decisão da Hachette de abandonar o livro de Woody Allen deixa-me muito desconfortável”, escreveu Stephen King, no Twitter, acrescentando: "Não é ele. Estou-me nas tintas para o Sr. Allen. É quem será amordaçado da próxima vez que me preocupa”.

Em resposta a uma pessoa que criticou a sua posição, acrescentou: "Se acha que é um pedófilo, não compre o livro. Não vá ver os seus filmes. Não o vão ouvir a tocar jazz no Carlyle. Votem com a carteira... retendo-a. É assim que fazemos na América".