Enquanto o IndieLisboa chega a meio, o SAPO Mag destaca duas histórias onde a política é centro. De um lado, o muito aguardado "O Processo", que retira a paixão da política e introduz-lhe um lado racional; de outro M.I.A. opta por falar de raízes e genocídios em "Matangi/Maya/ M.I.A." em vez de usufruir do seu estatuto de estrela pop.
"O Processo" da deposição de Dilma Rousseff
O filme de Maria Augusta Ramos vem de uma grande ovação no Festival de Berlim e venceu por lá um prémio do público. No Brasil estreia em maio, onde, numa país politicamente muito polarizado num ano eleitoral, poderá revestir-se de um significado ainda maior.
Essencialmente, "O Processo" segue os bastidores da deposição de Dilma Rousseff em 2016, revelando no conjunto a fragilidade jurídica da acusação e a execução de um plano parlamentar baseado no apoio dos grandes grupos de comunicação.
A referência ao famoso livro de Kafka do qual é extraído o título dá conta de um alegado crime que não se consegue provar, gerando uma procura incessante de novas razões para justificar uma condenação. O gabinete jurídico responsável por defender a então presidente Dilma Rousseff sabe desde o início que o "processo" de destituição não será uma questão legal, mas de maiorias parlamentares. E que o destino da presidente está selado desde muito antes.
A acusação contra ela conforme levantada pelos líderes da oposição ao governo (o principal articulador visível, Eduardo Cunha, acabaria arruinado e preso por corrupção durante o andamento do processo), sem imputação de crimes maiores, baseia-se em alguns imbróglios burocráticos presente num repasse de verbas para os agricultores. A argumentação é irrelevante.
A apreciação de "O Processo" não depende de "lados" onde se queira estar e esse é o grande mérito do filme. Com uma análise mais sóbria e menos fervorosa do que a princípio poderia parecer (o filme passa longe de um mero manifesto a favor de Dilma), a obra retira o primitivismo da vivência pública da política para levá-la para o campo das estratégias racionais dos gabinetes, onde a história é efetivamente decidida.
No mundo fora deles, no entanto, a política raramente tem a ver com estratégia e uso da razão e os "media" fazem o seu trabalho ao estimular a reação emocional através da forma como entrega uma suposta "realidade" aos espectadores de televisão. Neste sentido, há um espantoso "mea culpa" de um membro do Partido dos Trabalhadores a meio, que fala de "negligência" da máquina governamental em relação ao poder dos "media" e do falhanço nas políticas adotadas, baseadas nas concessões de canais a supostos apoiantes.
Obviamente o fenómeno não é brasileiro: há um depoimento de uma simpatizante (da defesa) francesa sobre ser impossível veicular material de apoio na imprensa do seu país porque "não existe imprensa livre e eles agora estão focados nos Jogos Olímpicos". Pode-se acrescentar a isso a ingenuidade de um comentário de Dilma a propósito das redes sociais na democracia pois, como se sabe, estas não fazem mais do que aquilo a que os sociólogos chamam de "ruído".
Se o final da história toda a gente já sabe, a emoção contida com que Dilma cita um poema de Maiakovski no dia da destituição mostra de forma clara a separação que se opera entre ruína política e dano pessoal. Se a injustiça é flagrante (derrubar por "corrupção" uma presidente sem qualquer acusação formal neste sentido), de outro há resignação aparente mediante um jogo que não poderia ter vencido. Mais do que um filme, "O Processo" é um pedaço de história em andamento, já que agora se vive um novo estágio da estratégia conservadora: a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Genocídios e guerras retóricas
Os "medias" não ficam muito melhor na fotografia em "Matangi/Maya/ M.I.A.", de Steve Loveridge. A cantora e compositora M.I.A. poderia viver sossegada na sua qualidade de estrela pop se resolvesse fazer o que a maior parte da humanidade faria no seu lugar – borrifar-se para tudo e usufruir de fama e fortuna. Em vez disto meteu-se numa guerra contra o "establishment" da comunicação social, radicalmente intolerante a desvios da norma – ou seja, a do entretenimento acéfalo e apolítico em estado puro.
M.I.A. nasceu no Sri Lanka e mudou-se com a família para Londres aos oito anos para fugir de uma guerra civil destinada a uma vida longa. O pai, membro dos Tigers Tamil, ficou. Com momentos intermitentes de paz, o conflito durou quase 26 anos. Pior: terminou em acusações de genocídio à minoria "tamil", a qual pertence, crimes contra a Humanidade e a abstenção das Nações Unidas em evitar os massacres.
M.I.A. resolveu denunciar isso tudo nos "media" das democracias ocidentais: acabou refém de um contradiscurso (no Sri Lanka os rebeldes são designados como "terroristas") e de tentativas mais ou menos bem-sucedidas dos apresentadores de televisão ocidentais em retirar o poder dos seus discursos (há pelo menos um momento notável neste sentido exibido no filme). A situação "piorou" quando a causa foi estendida a palestinianos e povos africanos e a "rapper" garantiu, desde o seu primeiro álbum, um rígido controlo para entrar e sair dos Estados Unidos.
Quanto à música, também por lá anda. A cantora fala de processos de escrita e criação e o filme acompanha paralelamente uma carreira que conta com cinco álbuns a reunir um raro consenso de sucesso comercial com críticas positivas. Conforme declara no início, ela estaria enterrada no mundo do álcool e das drogas se não se expressasse convenientemente. Mais algum artista alinha?
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