O cineasta romeno Cristian Mungiu, um dos grandes realizadores europeus do século XXI, tem pelo menos duas obras-primas no currículo – o brutal “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” (2007), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, e o denso “Para Lá das Colinas” (2012), distinguido com o prémio do Júri no mesmo festival.

“O Exame”, igualmente estreado na Croisette este ano, é o seu trabalho mais acessível – mas não menos acutilante. Conta a história de um pai, Romeo (Adrien Titieni), que faz todos os esforços para que a filha saia da Roménia e vá concluir os seus estudos em Inglaterra. Faltando um dia para o exame final, no entanto, algo acontece e Romeo embarca num labirinto sem fim à vista para concretizar o seu objetivo.

Nesta conversa com o SAPO Mag, o realizador falou sobre a (possível) acessibilidade do cinema de arte, lamentou que haja um estrangulamento da diversidade pelo cinema comercial e abordou a questão dos laços sociais sobre o prisma da paternidade e da corrupção. Autor de filmes de precisão milimétrica, falou também do seu complicado método de filmagens e, no final, ainda sobrou tempo para uma anedótica história envolvendo o seu conterrâneo Marius Niculae, antigo jogador de futebol do Sporting…

As suas histórias têm uma característica muito particular – evoluem numa direção oposta à dos filmes de aventura. Ou seja, não surge nenhuma saída secreta nem aparece nenhum super-herói para resolver a situação mas, pelo contrário, a cada passo que um personagem dá, mais complicada fica a sua situação…

Isso vem de uma perspetiva muito diferente dos meus filmes em relação aos que cita. Não posso ter essa espécie de herói porque uso a realidade e o dia-a-dia como base para as minhas histórias. As simplicidades do cinema 'mainstream' têm como finalidade o entretenimento, mas o que tento fazer é captar a complexidade e ambiguidade da vida real. Isto porque, quando você toma uma decisão, nem sempre sabe com precisão porque é que a tomou e ela não é, necessariamente, a melhor. Ainda assim, em relação aos filmes que citou, posso fazer um paralelo com os 'thrillers' no sentido de criar um ambiente de tensão permanente.

Para além desta intensidade de ‘thriller’, de uma forma diferente do convencional faz um cinema em geral acessível.

Faço isso propositadamente, tento constantemente que os filmes sejam acessíveis. Não concordo quando alguém acha que para ser realista, um filme necessite ser longo, chato e ‘artístico’. O que penso é que podemos falar sobre coisas sobre as quais as pessoas não pensam muito porque fazem parte da sua vida e não precisam ser confrontadas com um espelho todos os dias. Nisto o cinema pode ser útil, ajudar as pessoas a reconhecerem-se a si próprias. Podemos entrar numa sala de cinema e identificarmo-nos com algo que é sobre outras pessoas e pensar ‘Bom, isto também é sobre mim’.

Mas "Para Lá das Colinas" era mais difícil…

[risos] Sim, tem razão! É um filme mais complicado mas, de qualquer forma, cada obra tem os seus admiradores. Alguns preferem os mais radicais, outros preferem este, que é mais fácil de se ver. Mas o que importa é não ser prisioneiro do mesmo tipo de estilo, estar sempre livre para novas experiências.

No caso de "4 Meses…", por exemplo, o drama da protagonista estava diretamente ligado à ditadura de Ceausescu, mas em "O Exame" os acontecimentos passam-se 25 anos depois. É um filme que mostra uma sociedade ainda a lidar com corrupção e uma certa falência do pacto social…

Não penso que neste caso esteja relacionado com o comunismo ou o totalitarismo, assim como não penso que o filme fale apenas sobre a Roménia ou que o tema principal seja a corrupção. A corrupção não é inevitável às relações sociais, mas sim o compromisso. Este é uma escolha pessoal e, por vezes, as pessoas pensam que ‘é assim que funciona a sociedade e que não há nada a fazer’ mas, na verdade, ‘sim, tu podes fazer’. Há um preço a pagar se não entrarmos neste compromisso, mas ninguém nos força a tomar estas decisões.

O filme fala de uma sociedade disfuncional por algumas razões, mas não apenas porque vem do comunismo. Isto existe em todo o lado. O grande problema é como nos posicionamos numa sociedade como esta. Não é nossa culpa termos nascido aqui, OK. Mas aprendemos com a experiência da vida a lidar com isso. O problema é que depois temos filhos. Então, o que fazer? Quando é só connosco, é diferente, pensamos ‘posso lidar com isso à minha maneira’. Mas depois de termos filhos, colocamo-nos na posição de ter de lhe dizer alguma coisa e aí o que fazemos? Falamos sobre como as coisas são na vida real ou mantemos os discursos idealizados que eles ouviam quando eram pequenos – correndo o risco de não os preparar para a vida? E isso não é um problema da sociedade romena, mas universal. Houve momentos engraçados em festivais quando jornalistas de todas as partes do mundo diziam ‘sou de tal país e lá também é assim!’. Para além do compromisso, este filme também é sobre aquele momento da vida em que se olha e pensa… ‘será que tomei as decisões certas? O que vou fazer agora?’

Mas mesmo não sendo especificamente sobre a Roménia, toda a ação é despoletada e mantida em função do desejo do pai de mandar a filha para o exterior. Acha que há uma desilusão da geração pós-comunista?

Sim, há uma desilusão. Uma das razões tem a ver connosco: nós tínhamos enormes expectativas! Muito ingénuas, de certa forma… Quando o comunismo caiu todos nós pensámos quea justiça, principalmente, regressaria ao país, que haveria progresso… Mas nada disto aconteceu. Honestamente, houve algum progresso neste período. E o que são 25 anos enquanto período histórico? Nada. Mas nós não vivemos numa escala histórica, nós vivemos numa escala pessoal – e aí as pessoas estão desapontadas. Elas sentem que vivem numa sociedade onde não estão a conseguir preencher as suas necessidades e desejos pelos seus próprios méritos. Há elos, conexões que não dependem da sua vontade… e então há frustração. Mas penso que para pessoas da minha idade [48 anos], as respostas já não são tão importantes porque fizemos o nosso trajeto, mas sim para os nossos filhos. E é sempre mais difícil tomar decisões relativas a eles. No nosso caso estamos prontos para lidar com as consequências; em relação a eles é mais complicado. Na Roménia, éramos chamados de 'a geração do sacrifício', em parte por causa da lei de Ceausescu que proibia os abortos. Mas antes de nós, havia outra geração martirizada e agora já falamos que os nossos filhos são a ‘geração do sacrifício’.

A última cena, sem revelar nada, é belíssima e repleta de significados. Por um lado parece um comentário afetuoso sobre os jovens e o futuro, mas por outro é muito irónico se o que já vimos no filme até chegar aí…

Bom, espero que essa cena seja percebida como referiu, ‘cheia de significados’ e não quero interpretá-la. Mas sim, a juventude é algo fantástico porque se está cheio de esperança e acredita-se que, com 50 anos, a vida vai ser maravilhosa – mas por outro é triste porque, a partir de um certo momento, entra-se na mundo real e aos poucos vai perceber que a vida nunca vai se tornar naquilo que pensou que seria. Houve um momento engraçado quando eu estava num 'Q & A' e um jornalista falava sobre o ‘otimismo’ da cena final… E eu nem cheguei a responder – outra pessoa disse ‘otimismo? Você não viu o que aconteceu no filme?’ [risos]. Procuro muito essa ambiguidade. A conversa entre pai e filha, também no final, para mim é bastante clara, mas não o é para muita gente e prefiro que assim seja.

Os argumentos dos seus filmes são muito precisos. Como é o seu processo de escrita? É muito doloroso?

Encontrar a próxima história, escolher o que é importante, qual o tema, isto é difícil. Porque tenho que falar de coisas que são pessoais e, ao mesmo tempo, encontrar questões que falem da minha geração, da sociedade, do mundo onde vivemos, com que as pessoas se possam identificar. Também quero criar filmes narrativos, que não sejam difíceis de assistir. O problema é quando as soluções não aparecem! No caso de “O Exame”, sentia que alguma coisa ainda não estava bem, então continuei a escrever ao longo das seis semanas de rodagem. Depois o maior problema foi perceber que o filme não estava ambíguo o suficiente e fiquei bastante contente quando atingi esse propósito. Mas, ao mesmo tempo, essa precisão vem da forma como filmo. Continuo a filmar da mesma maneira que nos meus últimos três ou quatro trabalhos. Os diversos ‘takes’ da cena são rodados em sequência, não faço cortes. Então tudo tem que estar muito preciso. Parece simples, mas é muito complicado, talvez a forma mais complicada de fazer um filme! Exige-nos uma precisão ainda maior do que no teatro porque aí o ator ainda pode disfarçar, por exemplo, para recordar uma frase. Aqui é diferente – se o intérprete hesitar durante milionésimos de segundo já se consegue perceber e tem que se cortar. Então é um processo muito complicado e muito difícil para os atores porque requer total precisão – assim como do operador de câmara, das luzes, do som, tudo tem que estar no local certo. É bastante complicado, tenho de admitir [risos]. O resultado é que o espectador pode ser testemunha do que acontece, consegue sentir que o tempo passa com a mesma velocidade que no mundo real, não há cortes, não há montagem. E não há improvisação, não é começar a filmar e cada um faz o que quer [risos].

Então não é como Godard em alguns dos seus projetos…

Não! [risos]. Mas talvez ele tenha feito mais progressos do que eu [risos]. Os atores têm que fazer a coisa tão bem que eles não têm tempo para pensar no que estão a fazer. Mas no ‘set’ é doloroso, às vezes fazemos 30, 40 ‘takes’ – tantos quanto forem necessários. Para os atores é muito complicado, mas eles sabem que o resultado será bom, que o filme pode estar em Cannes, que podem construir uma bela carreira internacional.

E você abandonou o 'fora de campo', a sua marca registada!

Bom, penso que a história molda o filme. Neste caso não o abandonei totalmente, apenas não achei necessário usá-lo muitas vezes. Existem alguns exemplos onde muito se passa na imaginação do espectador – sem que ele esteja a ver de facto o que acontece. Mas sim, penso nisso que referiu, no modo como as histórias formam o estilo. Há algo bastante estranho vindo com a experiência, no sentido de que ficamos melhor mas, ao mesmo tempo, isso não significa maior criatividade.

Está a trabalhar em novos projetos?

Não. Neste momento está a tornar-se complicado apresentar este tipo de cinema às públicos e por isso estou bastante feliz do filme ter sido selecionado para Cannes e, a partir daí, lançado em vários sítios. Assim, se puder de alguma forma ajudar na promoção, na divulgação, para levar o filme até às pessoas... estou a concentrar-me nisto. Por isso não estou a pensar no próximo, pois isso toma bastante tempo, não é apenas ler uma história e dizer ‘quero contá-la’.

Por falar nesta dificuldade, de facto é uma pena que se produzam hoje tantos bons filmes, mas muito poucos estejam disponíveis.

Sim, é difícil competir com esta máquina de estrelas e marketing do cinema comercial. Não acho mau que o cinema de entretenimento exista, lamento apenas este estrangulamento da diversidade. Usar a imaginação e sonhar de diferentes formas – é para isso que o cinema existe. Esse forma de estandardizar o cinema é um grande perigo – e torna-se muito difícil chegar aos mais jovens. As crianças, desde pequenas, estão expostas a isso e, quando forem mais adultas e assistirem a um filme do Godard, aquilo vai parecer-lhes terrivelmente complicado pois não estão habituadas.

É a sua primeira vez em Portugal?

Não, estive aqui mais duas vezes. Uma vez estive num pequeno evento, uma mostra de cinema romeno há uns anos… [a Semana Romena, 2007]. Aliás, há uma história engraçada. Foi um período onde o Marius Niculae, um jogador romeno, representava cá o Sporting…

Sim, recordo-me…

Estou a dizer isto porque ele foi o principal financiador da mostra. A iniciativa era da Embaixada, mas afinal não tinham receitas para organizá-la, então ligaram para o Niculae! [risos]. Bom, mesmo não sendo ele necessariamente um fã de cinema, o seu negócio era jogar futebol, ele foi muito prestável e financiou o evento. De resto, foi um momento muito bom para mim, estava num momento maravilhoso com as críticas ao "4 Meses…", que também teve uma importante contribuição para criar a 'vaga romena'. Mas também lembro de tirar muitas fotografias, do sol… Sempre quis voltar com tempo para usufruir, pois achei Lisboa maravilhosa. Mas até agora não consegui e desta vez não vai ser possível outra vez…!

Trailer "O Exame".