Esta sexta-feira, a 77.ª edição do Festival de Cannes rendeu-se ao cineasta iraniano Mohammad Rasoulof, que acaba de fugir do seu país, e ao seu filme sobre a luta das mulheres pela liberdade, que se tornou o grande favorito à Palma de Ouro.

A ovação a "The Seed of the Sacred Fig" ["A Semente do Figo Sagrado", em tradução literal] na Croisette durou até 14 minutos, um dos momentos mais emocionantes da história do festival, um evento que se sabe transformar numa plataforma política quando é necessário.

A estreia representa uma reviravolta nas apostas à Palma, que até agora eram lideradas, segundo muitos críticos, por "Emilia Pérez", um musical em espanhol ambientado no México e filmado pelo francês Jacques Audiard.

"Espero que todo o aparato de opressão e ditadura acabe por desaparecer no Irão", declarou Rasoulof, entusiasmado, entre duas das atrizes que conseguiram deixar o país.

O cineasta, que deixou a República Islâmica a pé depois de ter sido condenado no início do mês a cinco anos de prisão e a levar chibatadas por "conluio contra a segurança nacional", agradeceu "a todos os que permitiram que este filme fosse feito, aos que estão aqui e aos que foram impedidos de vir".

Um filme clandestino

Com uma duração de épico (duas horas e 48 minutos), "The Seed of the Sacred Fig" foi filmado clandestinamente no Irão, com atores e uma equipa que permaneceram em grande parte no país e agora correm sério perigo.

O filme, que Rasoulof terminou de montar muito recentemente, insere-se desde o primeiro momento na realidade atual do Irão.

Conta a história de um juiz recentemente promovido aos tribunais revolucionários islâmicos, os mais temidos do país, e da sua esposa e duas filhas, no contexto das manifestações maciças contra o regime que foram duramente reprimidas, deixando centenas de mortos e milhares de presos, após a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, a 16 de setembro de 2022, detida por um alegado desrespeito às rigorosas normas de vestuário.

Para isso, Rasoulof usa como recurso específico as imagens que os próprios iranianos filmaram com os seus telemóveis durante anos de protestos e repressão, até transformar o filme numa comovente homenagem aos seus compatriotas, principalmente às mulheres.

"The Seed of the Sacred Fig"

O filme aproveita o pano de fundo para desenrolar a angustiante história deste juiz, Imán, dominado pelas exigências repressivas do regime e pela progressiva tomada de consciência das suas duas filhas sobre o que está a acontecer nas ruas.

Quando desaparece a arma que o juiz utiliza para sua proteção pessoal, o drama intensifica-se.

O realizador explicou que teve a ideia quando estava na prisão e um carcereiro lhe contou o que sentia a trabalhar ali.

"Todos os dias, quando passo por esta porta, a grande porta da prisão, pergunto-me em que dia me vou enforcar", disse-lhe ele.

Uma viagem "cansativa" e "perigosa"

A sentença judicial dos tribunais islâmicos contra Rasoulof deve-se ao seu filme anterior que, como toda a sua obra, é uma crítica inequívoca ao regime.

O cineasta fugiu a pé, atravessando a fronteira com a Turquia, numa viagem "cansativa" e "perigosa", revelou.

"Quando estava a atravessar a fronteira, virei-me, estava no topo de uma montanha e dei um último olhar à minha terra natal. Disse a mim mesmo: 'Voltarei'", declarou numa entrevista a um programa de televisão.

"Todos os iranianos que tiveram de partir devido a este regime totalitário têm sempre uma mala perto de si na esperança de que as coisas melhorem e possam regressar", acrescentou o realizador sentado ao lado da atriz Golshifteh Farahani, também iraniana, exilada em França desde 2008 e que participou em várias produções francesas e americanas.

Farahani, assim como outras atrizes da arriscada rodagem de "The Seed of the Sacred Fig", acompanharam Rasoulof na passadeira vermelha.

Mas faltavam os dois principais protagonistas, que não puderam comparecer.

Rasoulof mostrou sempre as suas fotografias: são eles o ator Missagh Zareh, que interpreta o juiz, e Soheila Golestani, que dá vida à esposa do magistrado.

Uma festival aberto ao cinema iraniano

Golshifteh Farahani e Mohammad Rasoulof

Rasoulof, de 51 anos, pisara a passadeira vermelha pela última vez em 2017, quando ganhou o prémio da mostra paralela Un Certain Regard por "Lerd", um filme sobre corrupção.

Em 2020, não foi autorizado a deixar o Irão para receber o Urso de Ouro em Berlim por “O Mal Não Existe”, uma leitura ácida da pena de morte, aplicada maciçamente pelo regime iraniano.

Além de "Lerd", apresentou em Cannes"Be omid-e didar" em 2011 ("Adeus" em tradução literal) e "Dast-neveshtehaa nemisoosand" em 2013 ("Manuscritos não Queimam" em tradução literal).

Esteve preso entre julho de 2022 e fevereiro de 2023, e só foi libertado graças a uma amnistia geral, concedida a milhares de pessoas após as grandes manifestações pró-democracia que sacudiram o país.

Foi na prisão de Evin que ouviu falar de uma rota secreta através das montanhas para a liberdade e contactou os seus antigos companheiros.

“Em retrospetiva, penso que tive muita sorte e privilégio de ir para a prisão porque foi lá que conheci pessoas, pessoas muito úteis, que me ajudaram a atravessar a fronteira. Não teria sido capaz de fazer isto de outra forma”, disse esta semana ao The Hollywood Reporter.

Cannes sempre abriu os braços ao cinema iraniano, que dá sinais surpreendentes de vitalidade.

Os realizadores Jafar Panahi ("Táxi de Jafar Panahi") e Saeed Roustaee ("Os Irmãos de Leila") são alguns dos cineastas iranianos que lançaram filmes recentemente.

Além de "The Seed of the Sacred Fig", Cannes vai assistir à estreia do último filme da mostra competitiva, "La plus précieuse des marchandises", filme de animação do francês Michel Hazanavicius, vencedor dos Óscares com "O Artista".

O júri, presidido pela atriz e realizadora Greta Gerwig, anunciará a lista de premiados no Festival de Cannes este sábado (25).