"Fragmentado", que estreou esta semana, chega ao nosso país já depois de se ter tornado um sucesso comercial os EUA, algo que o seu realizador, M. Night Shyamalan, não conhecia a sério desde "A Vila", lançado no verão de 2004.
O momento é ainda mais marcante porque acontece após vários filmes desastrosos que deixaram a sua carreira de rastos.
Exemplificativo do ponto a que as coisas chegaram foi o que aconteceu no outono de 2010, quando o trailer de "O Demónio" foi recebido com risos em algumas nas salas de cinema dos EUA. Algo bizarro pois tratava-se de um filme de terror, mas em Portugal aconteceu o mesmo e era no momento em que aparecia no ecrã "um novo pesadelo da imaginação de M. Night Shyamalan".
O estúdio por detrás do filme, a Universal, aprendia uma dolorosa lição: o nome do realizador, que dez anos antes era o prodígio de Hollywood e servia para promover tudo, era naquele momento "veneno de bilheteira".
O novo Spielberg antes dos 30 anos
Nascido em Puducherry, na Índia, em 1970, e criado nos subúrbios de Filadélfia (Pensilvânia), cenário de muitos dos seus futuros filmes, M. Night Shyamalan, foi conquistado pelo cinema ao receber uma câmara aos oito anos, tal como o seu ídolo Steven Spielberg.
A estreia nas longas-metragens, após vários filmes amadores, aconteceu em 1992 com "Praying with Anger", sobre um jovem indiano criado nos EUA, interpretado pelo próprio Shyamalan, que regressava ao seu país no âmbito de um programa de intercâmbio universitário, seguindo-se "Wide Awake", feito em 1995, mas apenas lançado três anos mais tarde, sobre um jovem à procura de Deus após a morte do avó.
Qualquer um deles passou relativamente despercebido e nada fazia prever o autêntico terramoto que aconteceria com o terceiro filme, com os elementos espirituais e sobrenaturais que se tornariam os temas recorrentes de todos os seus trabalhos, bem como uma das mais célebres "reviravoltas" da história do cinema: "O Sexto Sentido", sobre uma criança (Haley Joel Osment) atormentada por visões de espíritos que recebia a ajuda de um psicólogo (Bruce Willis) que tentava arranjar uma explicação racional para o problema, foi mais do que um gigantesco sucesso comercial que começou em agosto de 1999 e se prolongou por vários meses, tornou-se um fenómeno cultural.
O reconhecimento oficial chegou com seis nomeações para os Óscares, incluindo duas pelo argumento original e realização. Em paralelo, ele era também o argumentista do sucesso "O Pequeno Stuart Little": da noite para o dia, M. Night Shyamalan tornava-se um "autor", o novo Spielberg. Tinha 29 anos.
Com carta branca em Hollywood, voltou a juntar-se logo a seguir com Bruce Willis para contar a história do único sobrevivente de um violento acidente de comboio e que, sem sofrer um único arranhão, é contactado pelo misterioso proprietário de uma loja de livros de BD (Samuel L. Jackson) com uma bizarra explicação para o sucedido: a de que será um super-herói.
Lançado na infância do género no cinema (apenas alguns meses após "X-Men"), "O Protegido" (2000) foi encarado como um objeto estranho, mas tem vindo a ser progressivamente valorizado e agora é por muitos considerado o seu melhor filme, sempre com algo de novo a descobrir, ao contrário por exemplo, de "O Sexto Sentido", que após se conhecer o seu "twist", já não tem o mesmo impacto.
Com Mel Gibson e Joaquim Phoenix, "Sinais" (2002), uma história de amor, fé e mistério numa pequena terra do interior americano em redor do aparecimento de misteriosos sinais em forma de círculos gigantescos, confirmou o seu estatuto de mestre do "thriller", mas apesar do sucesso, alguns críticos começam a notar que os seus filmes pareciam ser construídos apenas para surpreender o público com uma reviravolta inesperada na história.
Isso tornava-se mais evidente com "A Vila" (2004), sobre uma pequena comunidade de Covignton, no interior da Pensilvânia, que no final do século XIX vive atormentada pela crença de que os bosques que a envolvem são habitados por criaturas míticas, que acabou por ser uma desilusão comercial nos EUA mas foi um razoável sucesso noutros países.
Seguiu-se "A Senhora da Água", sobre um gerente de um bloco de apartamentos (Paul Giamatti) que se depara com uma mulher estranha a nadar nas piscinas (Bryce Dallas Howard) que é uma criatura fantástica enviada para a Terra para proteger a humanidade de uns seres místicos que lhe querem causar mal, descrito como o seu trabalho mais pessoal, a partir de um argumento escrito para as suas filhas.
Ao contrário dos filmes anteriores, em que fazia participações simbólicas como ator, Shyamalan surgia aqui como um visionário cujos escritos mudam o mundo, o que poderá ter contribuído para tudo ser recebido como um exercício de pretensiosismo (não ajudou o facto de incluir na história a personagem de um crítico de cinema arrogante que tinha um fim trágico, o que foi encarado como uma resposta aos seus próprios críticos) e uma dispendiosa massagem de ego.
A descida ao inferno
Com "A Senhora da Água" arrasado nas bilheteiras, o cineasta demorou três anos até regressar com "O Acontecimento" (2008).
Apesar de não ter sido, ao contrário do que foi amplamente divulgado, um fracasso comercial, este "thriller pós-ambientalista" foi tão mal recebido que apenas reforçou o negativismo em redor de Shyamalan e acabou ridicularizado pelo próprio Mark Wahlberg, que aqui interpretava o professor de Ciências que tentava proteger a família de um inexplicável e imparável acontecimento que ameaça a espécie humana.
"O Último Airbender" (2010), com um elenco composto por desconhecidos, à excepção de Dev Patel, que recentemente atingira o estrelato com o oscarizado "Quem Quer Ser Bilionário?", foi um equívoco ainda pior, apesar de ser a primeira vez que um filme não partia de um argumento da sua autoria mas adaptava um universo pré-existente de uma série de animação de grande sucesso exibida inicialmente no canal Nickelodeon.
Nem o facto de ser convertido à pressa para um desastroso 3D para aproveitar a moda ajudou "O Último Airbender": novamente rejeitado pelos espectadores e com reações críticas devastadoras, é por esta altura que surgem as notícias dos risos durante a apresentação do trailer de "O Demónio".
Shyamalan faz nova pausa apenas para voltar e bater no fundo com o desastroso "Depois da Terra" (2013), completamente manietado pelos egos de Will Smith e do seu filho Jaden Smith numa história de ficção científica que se passava mil anos após a Terra sobreviver a vários cataclismos.
Com a credibilidade arrasada, roda em segredo nos primeiros meses de 2014 um filme de terror que marcaria um regresso tanto às origens temáticas (dois irmãos recebidos pelos avós numa remota quinta que descobrem que existe neles algo profundamente perturbador, vendo as suas hipóteses de regressar a casa a diminuírem de dia para dia), como financeiras: custava apenas 5 milhões de dólares ("Depois da Terra" chegara aos... 130).
Lançado no fim do verão de 2015, "A Visita", torna-se um moderado sucesso nas bilheteiras pela mesma altura em que estreia a série "Wayward Pines", de que é um dos produtores e realizou o episódio-piloto, mas é agora "Fragmentado", novo "thriller" feito por nove milhões em redor de um homem com 23 personalidades diferentes e ainda outra que quer ser a dominante (interpretação elogiadíssima de James McAvoy), que marca a completa reconciliação de Shyamalan com os seus críticos e o público: vai ser o primeiro filme de 2017 a ultrapassar os 100 milhões de dólares nos EUA.
Trailer "Fragmentado".
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