Dois filmes sobre mulheres foram coroados numa noite que serviu para Hollywood valorizar o seu papel na indústria e exorcizar os escândalos sexuais que tanto a atingiram nos últimos meses.

Um filme sobre uma mulher em fúria à procura de justiça, "Três Cartazes à Beira da Estrada", foi o grande vencedor dos Globos de Ouro: além de Melhor Filme em Drama, recebeu os prémios de Melhor Atriz (Frances McDormand), Ator Secundário (Sam Rockwell) e Argumento.

Já "Lady Bird", sobre uma adolescente a tentar descobrir o que quer ser na vida adulta, foi considerada a Melhor Comédia ou Musical e a sua protagonista, Saoirse Ronan, ganhou o prémio de Melhor Atriz na mesma categoria de género.

"Coco" foi o muito previsível Melhor Filme de Animação, mas fugiu-lhe o Globo de Melhor Canção, onde prevaleceu "This Is Me" de "O Grande Showman". Os cerca de 90 votantes dos Globos também voltaram a surpreender na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, atribuído ao alemão "In The Fade - Uma Mulher Não Chora".

Em televisão, manteve-se a tendência das obras centralizadas em mulheres, a começar por "Big Little Lies", que já tinha dominado os Emmys em setembro e agora recebeu quatro prémios: a minissérie da HBO ganhou a sua categoria e ainda pelas interpretações de Nicole Kidman, Laura Dern e Alexander Skarsgard.

"The Handmaid’s Tale", do serviço por streaming Hulu, também repetiu a vitória dos Emmys, sendo considerada a Melhor Série em Drama, com mais uma distinção reservada também a Elisabeth Moss. E The Marvelous Mrs. Maisel", da Amazon, ganhou em comédia, confirmando a desertificação dos grandes canais de TV dos EUA (só representada pelo Melhor Ator em Drama, Sterling K. Brown de “This Is Us”).

Hollywood dá a sua resposta pública à controvérsia dos assédios sexuais

Para além de homenagearem o melhor em cinema (14 prémios) e televisão (11) do ano passado, os Globos eram a primeira cerimónia em directo que juntava Hollywood após os escândalos sexuais em que está mergulhada desde outubro. Por isso, foram um gigantesco exercício de exorcismo.

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Antes dos prémios, as estrelas desfilaram na passadeira vermelha vestidas de preto em solidariedade com o movimento contra os assédios e o tema marcou a maioria dos discursos, tanto de vencedores como de alguns apresentadores, além do anfitrião, que abriu assim o evento: "Boa noite, senhoras e senhores que restam. Sou o Seth Meyers e esta noite serei o vosso anfitrião. É 2018, a marijuana é finalmente legalizada e o assédio sexual finalmente não é".

"Para os nomeados na sala esta noite, esta é a primeira vez em três meses que não será assustador ouvir o seu nome ser lido em voz alta", prosseguiu.

Quem conhece o seu talk-show noturno que tem como grande alvo o atual inquilino da Casa Branca, terá ficado surpreendido com o papel secundário que Seth Meyers lhe reservou. Além de brincar com o facto de que Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood ser uma combinação de palavras "que não podia ter sido melhor criada para enfurecer o nosso presidente",  ou suspirar por uma corrida presidencial de Oprah Winfrey com Tom Hanks, o mais sério que o anfitrião se aproximou da atualidade política foi quando disse que nem era o Seth mais poderoso na sala, numa alusão a Seth Rogen, e citou a comédia "Uma Entrevista de Loucos", que enfureceu Kim Jong-un: "Recordam-se quando era ele que criava os maiores problemas com a Coreia do Norte?"

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Mostrando que há feridas que vão demorar a cicatrizar, os momentos em que Seth Meyers se referiu diretamente às duas maiores personalidades caídas em desgraça deixaram claramente as estrelas na sala a rir com nervosismo.

"Vão fazer outra temporada de 'House of Cards'. O Christopher Plummer também está disponível para isso? Espero que ele consiga fazer um sotaque sulista. Porque não há dúvida que o Kevin Spacey não conseguia. Oh, isso é demasiado maldoso? Para o Kevin Spacey?", avançou.

Mas foi para o produtor Harvey Weinstein que ficou a piada mais contundente: "É a altura de falar do elefante que não está na sala. Harvey Weinstein não está cá esta noite porque ouvi rumores de que ele era maluco e alguém com quem é difícil trabalhar. Não se preocupem, ele voltará daqui a 20 anos quando se tornar a primeira pessoa apupada durante o momento em que se homenageia os que morreram."

Oprah Winfrey põe sala de pé com poderoso discurso

Seth Meyers acabou por fazer um exercício de equilibrismo: entreter as estrelas com piadas sobre o tema do momento. No resto da cerimónia, deixou o palco para as estrelas falarem mais a sério não só sobre os assédios, mas principalmente sobre a desigualdade de género em Hollywood. Estranhamente, a organização esqueceu-se de intercalar isso com humor: Meyers eclipsou-se, limitando-se a anunciar os apresentadores, tornando a noite muito pesada.

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Teve de ser Oprah Winfrey a resgatar o evento usando o seu percurso, que teve um ponto de partida bastante humilde, a colocar de pé o auditório com uma meditação inspiradora sobre o movimento #MeToo, a liberdade de imprensa e a desigualdade racial nos EUA, prometendo que "um novo dia está a caminho"...

Ao aceitar o prémio de carreira Cecil B. DeMille, fez questão de recordar que os assédios sexuais "transcendem qualquer cultura, geografia, raça, religião, políticas ou local de trabalho", acrescentando que queria "expressar gratidão por todas as mulheres que aguentaram anos de abuso e ataques porque elas, como a minha mãe, tiveram crianças para alimentar e contas para pagar e sonhos para perseguir. Elas são mulheres cujos nomes nunca iremos conhecer".

No seu discurso, também citou o exemplo de Recy Taylor, uma mulher negra que foi violada em 1944 por seis homens que nunca foram condenados e que morreu há 10 dias, com 97 anos: "Ela vive, como todas vivemos, numa cultura quebrada por homens brutais poderosos. Durante demasiado tempo, as mulheres não foram ouvidas ou acreditadas se se atrevessem a dizer a sua verdade sobre o poder desses homens, mas a hora delas chegou. A hora delas chegou!"

Oprah Winfrey foi a primeira mulher negra a receber este prémio: "Quero dizer a todas as raparigas que estão a ver que um novo dia está no horizonte. E quando esse novo dia finalmente nascer, será porque imensas mulheres magníficas, muitas das quais estão aqui nesta sala esta noite - e alguns homens bem fenomenais - lutam bastante para terem a certeza que se tornam as líderes que nos conduzem a um tempo em que ninguém nunca mais tenha de dizer #MeToo."

Cinema com contas baralhadas

São os prémios de cinema que concentram sempre as atenções pois os Globos costumam ser vistos por muitos como a grande "antecâmara" dos Óscares, que este ano acontecem a 4 de março. A estatística contraria essa ideia — nas últimas 11 edições apenas quatro filmes repetiram a vitória nos Óscares: "Quem Quer Ser Bilionário?", "O Artista", "Argo" e "12 Anos Escravo" —, mas os prémios darão mais visibilidade a alguns filmes numa temporada cheia de incertezas.

"Três Cartazes à Beira da Estrada" chegou muito mais longe do que se esperava, "tirando" a "Lady Bird" um prémio que parecia certo pelo argumento e com Sam Rockwell a contrariar o favoritismo até agora quase absoluto de Willem Dafoe. Já a fantasia "A Forma da Água", que ganhou o Leão de Ouro em Veneza e era o título mais nomeado, em sete categorias, acabou por ficar apenas com os prémios para Melhor Realização (Guillermo del Toro) e Banda Sonora.

Isto não quer dizer que se possam tirar grandes conclusões: todos estes filmes e ainda "The Post", "Dunkirk", "Chama-me Pelo Teu Nome" ou "Foge", que saíram agora de mãos a abanar, vão disputar taco a taco outros prémios nas próximas semanas.

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Nas categorias de interpretação, além de Frances McDormand e Saoirse Ronan, também Gary Oldman viu confirmado o favoritismo que os analistas lhe dão deste temporada ao ser consagrado como o Melhor Ator em Drama, depois de perder alguns prémios para Timothée Chalamet ("Chama-me Pelo Teu Nome").

Os dois devem chegar às nomeações para os Óscares e é provável que tenham a companhia de James Franco, votado Melhor Ator em Comédia ou Musical por "Um Desastre de Artista", que agradeceu o prémio com Tommy Wiseau, o realizador de "The Room", considerado um dos piores filmes de sempre, que retrata em "Um Desastre de Artista".

Entre as atrizes secundárias, foi agora a vez de Allison Janney ("Eu, Tonya") ganhar a Laurie Metcalf ("Lady Bird"), mas é provável que duas continuem a dividir prémios até à noite dos Óscares.

 LISTA DE PREMIADOS

Cinema

Melhor Filme (Drama)

  • "Três Cartazes à Beira da Estrada"

Melhor Filme (Comédia ou Musical)

  • "Lady Bird"

Melhor Realização

  • Guillermo del Toro ("A Forma da Água")

Melhor Ator (Drama)

  • Gary Oldman ("A Hora Mais Negra")

Melhor Atriz (Drama)

  • Frances McDormand ("Três Cartazes à Beira da Estrada")

Melhor Ator (Comédia ou Musical)

  • James Franco ("Um Desastre de Artista")

Melhor Atriz (Comédia ou Musical)

  • Saoirse Ronan ("Lady Bird")

Melhor Ator Secundário

  • Sam Rockwell ("Três Cartazes à Beira da Estrada").

Melhor Atriz Secundária

  • Allison Janney ("Eu, Tonya")

Melhor Argumento

  • "Três Cartazes à Beira da Estrada"

Melhor Filme Estrangeiro

  • "In The Fade"

Melhor Filme de Animação

  • "Coco"

Melhor Banda Sonora Original

  • "A Forma da Água"

Melhor Música Original

  • “This Is Me (de "O Grande Showman").

Televisão

Melhor Série (Drama)

  • "The Handmaid’s Tale"

Melhor Série (Comédia)

  • "The Marvelous Mrs. Maisel"

Melhor Telefilme ou Minissérie

  • "Big Little Lies"

Melhor Ator (Série Drama)

  • Sterling K. Brown (“This Is Us”)

Melhor Ator (Comédia ou Musical)

  • Aziz Ansari ("Master of None")

Melhor Ator em Telefilme ou Minissérie

  • Ewan McGregor, ("Fargo")

Melhor Atriz (Série Drama)

  • Elisabeth Moss (“The Handmaid’s Tale”)

Melhor Atriz (Comédia ou Musical)

  • Rachel Brosnahan ("The Marvelous Mrs. Maisel")

Melhor Atriz em Telefilme ou Minissérie

  • Nicole Kidman ("Big Little Lies")

Melhor Ator Secundário em Série, Minissérie ou Telefilme

  • Alexander Skarsgard ("Big Little Lies")

Melhor Atriz Secundária em Série, Minissérie ou Telefilme

  • Laura Dern (“Big Little Lies”)